quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A Imaculada Conceição e um dragão simpático

Um dos aspectos mais gratificantes deste blog é o movimento de pessoas que vão aparecendo, enviando imagens de peças suas, umas pedindo ajuda para identifica-las, outras enviando fotografias pelo mero gosto de partilhar informações e interesses comuns. Há uns tempos, o António entrou em contacto comigo, pedindo-me informações sobre quem lhe poderia restaurar uma Imaculada Conceição em madeira. Recomendei-lhe que entrasse em contacto com o antigo Instituto José de Figueiredo, que está agora integrado no Instituto dos Museus e da Conservação, pois a partir de lá, podiam-no reencaminhar para profissionais credenciados.

O trabalho acabou por ser realizado no próprio Instituto dos Museus e da Conservação e no final, o António mandou-me um e-mail com as fotografias da Imaculada Conceição toda restauradinha e muito simpaticamente autorizou-me a reproduzi-la no blog.
Para perceber o que é esta imagem, convém explicar que ela representa a Imaculada Conceição, um dos dogmas mais estranhos da Igreja Católica, para a nossa sensibilidade contemporânea e descrente. Em termos muito simplistas, o dogma da Imaculada quer dizer que não só Maria concebeu Jesus sem pecado, como ela própria foi concebida sem pecado. Este “arranjo” sobre a pureza de Maria tem a ver com a Divindade de Cristo. Ora, se Cristo tivesse nascido no ventre de uma campónia qualquer da Judeia, então Jesus seria um mero profeta, menos divino e provavelmente não estaria ao nível do Deus Pai e do Espírito Santo. Portanto, os teólogos católicos, que apesar de tudo, gostavam de arranjos racionais à moda da filosofia grega, compuseram a coisa de forma a Maria ser inteiramente imaculada e divinizaram-na também. Este assunto, juntamente com a Santíssima Trindade provocou discussões tremendas entre os cristãos do Oriente e do Ocidente. Ao longo da Idade Média, muitos concílios de altos dignitários eclesiásticos acabaram em cenas de pugilato e o irremediável acabou por acontecer, a separação entre as igrejas do Oriente e do Ocidente e numerosos conflitos políticos e militares surgirão desse cisma. Mais tarde, a Santíssima Trindade e o dogma da Imaculada Conceição de Maria dividirão novamente católicos e protestantes, que se defrontarão em lutas fratricidas, em França e na Alemanha, nos século XVI e XVII. As guerras civis na Irlanda do Norte e na ex-Jugoslávia, terminadas há bem pouco tempo foram os últimos conflitos entre Cristãos divididos por causa de dogmas deste calibre.

Voltando à Imaculada Conceição esta devoção foi extremamente popular em Espanha, Portugal e Itália. Terá sido graças a sua intercessão, que em 1571 espanhóis, italianos e austríacos venceram os turcos na batalha naval do Lepanto, que travou de vez o avanço do Islão no Mediterrâneo. Em 1646, o nosso D. João IV, perfeitamente em pânico com a perspectiva de defrontar a Espanha, uma das maiores potências militares da época, fez aclamar nas cortes a Imaculada Conceição Rainha de Portugal e desde essa altura, os reis portugueses nunca mais foram coroados. Durante a cerimónia de entronização do novo rei português, a Coroa permanecia numa almofada ao lado.
Em termos iconográficos, esta é a imagem da Virgem Maria, antes do nascimento de Cristo, representada como a nova Eva, aquela que resgatará os pecados da anterior Eva do antigo Testamento, esmagando o mal, aqui representado pelo Dragão. A serpente é mais vulgar na iconografia da Imaculada Conceição para representação do mal, mas em Portugal, preferiu-se muitas vezes usar o dragão, correspondendo a uma visão do Apocalipse: Depois, apareceu um grande sinal Céu: Uma mulher revestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés e una coroa de duas estrelas sobre a cabeça, Eslava grávida, com dores de parto, e gritava com ânsias de dar ti luz. Apareceu então outro sinal no Céu: Um grande dragão vermelho com sete cabeças, dez chifres, e, sobre as cabeças sete diademas, A sua cauda varreu a terça parte das estrelas e lançou-as sobre a terra: deteve-se diante da mulher que estava para dar à luz. Preparando-se para lhe devorar filho logo que ele nascesse, Ela deu à luz um Filho, um Varão, que há-de reger todas as nações com ceptro de ferro; e o Filho foi arrebatado para junto de Deus e do Seu trono.

A imagem não apresenta o crescente lunar, elemento típico da iconografia da Imaculada.

Pessoalmente fiquei encantado com o dragão da imagem, que antes do restauro nem se via. Parece um dragão brincalhão, daqueles que aparecem nos filmes da Walt Disney, o que só vem reforçar uma ideia que já foi várias vezes abordada neste blog. Até ao século XIX, a arte portuguesa, mesmo quando representa temas que se prestam ao soturno e ao terrível, raramente é macabra. Apresenta sempre um ar intimista, familiar e até jocoso, como este dragãozinho de brincar.
Ao contrário de mim, o António está fascinado com o movimento das vestes, que parecem sopradas por um vento barroco e cheio de caprichos.

8 comentários:

  1. Quero pedir desculpa ao dono da peça e a ti, mas prefiro as cores da escultura antes do restauro, aliás coloco mesmo a hipótese se não será devido à luz sob a qual deverão ter sido tiradas as fotografias.
    Mas as cores da peça antes do restauro são mais consentâneas com uma peça antiga, que passou por muita história. Tendo a gostar das peças a mostrar as mazelas que lhe infligiu aquilo que gosto de denominar de "viver" (não incluo aqui a negligência, que estes danos devem ser corrigidos sempre que possível e aceitável).
    A "vida" das peças de arte, por sorte para os amantes dela, soe ser muito mais longa que a humana, por isso passam por muito mais do que nós, ultrapassam guerras, revoluções, caprichos do gosto, tendências para as subverter, poluição e, por último, mas não menos importante, o uso diário que as sucessivas gerações lhes dão.
    Claro que é uma tentação tornar as peças mais próximas do original, e eu próprio confesso que caio nessa tentação bastas vezes, mas reconheço que nada se compara à beleza dada pelo "viver de uma vida".
    Quanto ao aspecto brincalhão do dragão, creio que se prenderá com uma certa clivagem que se nota na arte ocidental, sobretudo entre a da Europa do Norte e a do Sul.
    É perigoso extrapolar estas coisas do gosto, mas dificilmente encontro paralelo, na Europa Meridional, para a "Pietá" (ou "Mater Dolorosa") produzida na Alemanha no início do século XIV, que se encontra em Bona (faz-me recordar um pouco, sob outro contexto, a Maria Madalena de Donatello, de meados do século XV).
    Mas quando me lembro de "Pietás" meridionais surge-me a "Pietá" de Bellini, de meados do século XV, que se encontra em Brera, onde tudo é contenção e decoro, uma procura pelo equilíbrio e serenidade, apesar da tensão dramática que paira no ar, sugerida pelas faces dos intervenientes.
    Da mesma maneira não consigo encontrar par, no Sul, para o Cristo da Crucificação de Matthias Grünewald do altar de Isenheim, de inícios do século XVI.
    Temos, a contrapor, os demónios do "Inferno" patente no MNAA, obra de um pintor desconhecido português do século XVI, mas esta obra parece aquela com que me metiam medo quando fui a primeira (e única) vez à catequese, aos 7 anos de idade ... só serve mesmo para assustar criancinhas, os adultos não vão nestas conversas!
    Bem, enveredei por um caminho que não me pararia mais ... tenho de terminar, senão quem me bloqueia serás tu! E com toda a razão!
    Manel

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  2. Gostei de saber do intercâmbio e partilha que o blog tem despoletado no mais diverso leque de visitantes.
    Quanto à imagem, é a minha preferida.
    Também eu, tal como o Manel se acaso fosse minha, não a teria restaurado.
    Reconheço que o trabalho foi bem feito.
    Contudo gostando por demais de objectos com a marca do tempo, olhando a imagem antes do restauro , em mim ela irmana e transcende de beleza que a antiguidade lhe conferia e agora o restauro escondeu.
    Casos futuros que tal a ideia de se fazer um post a perguntar a opinião...
    é muito à frente admitir opiniões
    Claro que o dono, somente ele fará o que a sua vontade lhe ditar, e no caso ninguém poderá levar a mal.
    Aceitar que os gostos não se discutem, tal como aceitar opinar delicadamente e nunca ser hipócrita
    Bem, isto hoje não saiu lá muito bem...
    E que me desculpe o António!
    Beijos
    Isabel

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  3. Todo aquele arrazoado para concluir que a arte do Norte da Europa é possuidora de um dramatismo que o Sul tenta contornar, aproximando-se mais duma contenção de sentimentos e de um lado comezinho que poderão fazer crer na existência de uma serenidade que mais não é que aparência.
    A pressa de acabar o comentário e sair para o trabalho não me deixou chegar a uma conclusão que, ainda que muito discutível, pretendia partilhar
    Manel

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  4. Viva Luis,

    Tenho andado a seguir o seu blog com alguma frequência, não só por partilhar consigo o gosto por estas coisas das antiguidades, o que em alguém com a minha idade, é visto como algo de muito excêntrico, como tambem pelos textos interessantes que acompanham as peças (apesar de não concordar com algumas das suas ideias ou afirmações, mas isto é mesmo assim, sensiblidades, formações diferentes fazem ter opiniões diferentes, o que claro é bom).
    Por outro lado descobri, com com alguma vontade de de eliminar "rivais", que tenho um concorrente na arqueologia dos contentores das obras, mas por outro com safisfação, porque não sou o único maluco que anda a remexer no lixo!!!!
    Relativamente a a esta imagem de Nossa Senhora da Conceição, devo dizer que também prefira o seu aspecto antes do restauro. Obviamente que percebo a intenção, até porque a peça estava mutilada, provavelmente também que quereria restituir as mãos, no entanto o tratamento das cores tirou-lhe toda a marca do tempo. Nos restauros que faço nunca dou às peças o aspecto original, pretendo que mantenha a beleza da sua História, e por vezes a marca do restauro feito, obviamente que depende sempre da peça, se é algo que lhe dá identidade.
    Tenho especial interesse por arte sacra, daí por me decidir a dar este breve comentário.

    Parabéns pelo blog

    C.

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  5. Caro C, muito bem vindo ao blog, apesar de andar a fazer-me concorrência nos contentores das obras. Eu bem tenho encontrado menos azulejos por lá nos últimos tempos. Deve ser o "C" que se antecipa. Lol

    Manel, C e Maria Isabel

    Julgo que o nosso amigo António não usou as luz correcta nas fotografias e talvez a imagem tenha ficado com mais brilho do que devia. Concordo com as vossas opiniões, preferia um pouco mais de patine, mas achei admirável como conseguiram "renascer" o Dragão da sujidade toda em que estava envolta a peça..

    Também não nos podemos esquecer que muita da escultura antiga era fortemente colorida. O Pórtico da Glória em Santigago de Compostela era originalmente cheio de cor.

    Gostei muito das reflexões do Manel sobre o tema proposto, o intimismo e um certo espírito jocoso da arte Portuguesa.

    Obrigado a todos pelos vossos comentários cheios de espírito

    Abraços

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  6. Luís, que coincidência ter-se referido neste comentário ao Pórtico da Glória da Catedral de Santiago de Compostela. Estivemos a visitar a monumental Catedral mais uma vez precisamente este fim de semana, com um grupo de amigos, e há sempre coisas novas para ver. Desta vez fomos ao Museu da Catedral, onde vimos muitos fragmentos e a reconstituição do coro românico de Mestre Mateo, belíssimas peças de arte sacra, entre elas uma Virxe da Imaculada lindíssima com longos cabelos ondulados, do séc. XVI, salvo erro, o tesouro, com magníficos relicários em prata, ouro e pedras preciosas...
    E depois tivemos as mariscadas nas Rias Baixas q também são visitas muito interessantes...LOL
    Quanto à Imaculada Conceição q aqui nos mostra, é uma boa peça de arte sacra, mas partilho das opiniões q aqui foram expressas quanto ao restauro.
    O q eu acho sempre um gosto é ler as histórias interessantes que desenvolve à volta das peças e esta é mais um bom exemplo disso.
    Um abraço
    Maria Andrade

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  7. Luís e António

    Não sei porquê, mas o meu subconsciente avisa-me que fui indelicada.
    Queiram desculpar-me, esqueci-me que são homens, sensíveis, e eu atabalhoada como é hábito escrevo o que me vem à tola sem pensar...
    Já devia ter crescido, mas que fazer, ele há dias menos bons.
    De facto o dragãozinho é lindo e o talhe do movimento do manto também...sei que no passado as cores eram predominantemente fortes, mas o meu gosto é mais para o escuro,dourados velhos...
    Sinto que vos magoei com o meu comentário.
    Aceitem de coração as minhas desculpas...não foi com intenção...é o à vontade que me cria situações embaraçosas como a que aqui deixei postada, julgo que vos conheço há décadas...
    Sinceras desculpas aos dois. Reconheço que fui injusta , mui directa no meu comentário, poderia ter dito a mesma coisa de uma forma mais airosa sem magoar, estraguei a alegria de ambos, não devia, fui egoísta.
    Beijos
    Isabel

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  8. Cara Isabel

    Este blog é um espaço de discussão e troca de ideias e não é suposto estarmos todos de acordo e os comentadores não terão sempre que abanar a cabeça, fazer continência e dizer “Yes Sir”. Para isso, basta-nos o governo do Sócrates

    O restauro integral ou parcial é uma coisa discutida pelos especialistas há muito. No passado, muitas das esculturas, estátuas e pinturas que conhecemos tinham cores garridas e vivas. Já falei aqui no Pórtico da Glória em Santiago, cujas esculturas são hoje da cor da pedra, mas que ainda conservam restos de policromia. Se hoje as restaurassem, se calhar o resultado seria considerado piroso ou espalhafatoso, mas seria sem dúvida fiel à criação original.

    Pessoalmente prefiro alguma patina nas obras, mas o restauro da Imaculada do António foi feita por gente credenciada. O António terá que esperar uns 4 ou 5 anitos, convidar uns quantos fumadores para casa, para a sua santa ficar com o tom certo

    Beijos

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