Já há muitos anos comprei num alfarrabista lisboeta esta estampa que representa Santa Auta, datada de 1783 e é talvez dos meus melhores registos de santos. É toda ela muito barroca, cheia de uma delicadeza e graça, que nos faz esquecer completamente que Sta. Auta foi umas das onze mil virgens massacradas pelos Hunos na cidade de Colónia. Aliás esta estampa sugere-nos tanto o sofrimento, o martírio ou o sangue dos mártires como o Petit Trianon em Versalhes, ou seja absolutamente nada.
A palma de mártir |
E no entanto a santa lá tem na mão a palma a indicar que morreu martirizada e uma seta na outra mão, revelando-nos que foi trespassada por flechas.
O instrumento do martírio, a flecha |
Auta era uma das muitas donzelas que acompanhavam Santa Úrsula numa peregrinação a Roma. As jovens foram surpreendidas em Colónia pelos Hunos, que as chacinaram sem dó nem piedade. Esta história algo mirabolante das 11 mil virgens terá tido origem numa lápide romana, do séc. IV ou V existente na igreja de Sta. Ursúla em Colónia, que testemunhava o martírio de umas virgens cristãs, mas sem especificar o número e o nome.
Mais tarde, entre o século VIII e IX a história ganhou contornos de lenda, quando se encontraram alguns cadáveres de jovens, provavelmente restos de algum cemitério romano, entre os quais os de uma menina chamada Úrsula, em latim, Undecimilla, que alguém interpretou erradamente por onze mil. Há também outra versão, que explica que no Séc. VIII a lenda ainda apresentava só 11 Virgens mártires, identificadas nos textos e na epigrafia pela abreviatura XI. M. V e que mais tarde foi lida como significando onze mil e lá ficaram 11.000 virgens para a História.
Sta. Úrsula, outra estampa da minha colecção |
Mais tarde, entre o século VIII e IX a história ganhou contornos de lenda, quando se encontraram alguns cadáveres de jovens, provavelmente restos de algum cemitério romano, entre os quais os de uma menina chamada Úrsula, em latim, Undecimilla, que alguém interpretou erradamente por onze mil. Há também outra versão, que explica que no Séc. VIII a lenda ainda apresentava só 11 Virgens mártires, identificadas nos textos e na epigrafia pela abreviatura XI. M. V e que mais tarde foi lida como significando onze mil e lá ficaram 11.000 virgens para a História.
Em Portugal, o culto de Santa Auta, deve-se sobretudo à Rainha D. Leonor, a senhora que foi mulher de D. João II, irmã de D. Manuel I, regente várias vezes e uma das mulheres mais influentes na história portuguesa. Mandou vir as relíquias da referida Santa da Alemanha, que cá chegaram em 1517 e foram depositadas da Igreja da Madre de Deus.
Esta Santa Auta de desenho precioso foi concebida por Jerónimo de Barros Ferreira (1750-1803), pintor, desenhador e miniaturista, que se distinguiu pelo primor das suas flores e ornatos. O Dicionários de pintores e escultores portugueses, de Fernando Pamplona refere uma série de retratos que este artista fez, bem como muitas pinturas murais em igrejas e palácios de Lisboa, mas não consegui encontrar imagens de nenhuma essas obras, apesar da qualidade desta Santa Auta me deixar muito curioso em relação à sua restante obra.
Mas como sou bibliotecário, vasculhei e pesquisei e lá consegui encontrar uma obra do século XVIII, integralmente digitalizada, Noites jozephinas de Mirtilo sobre a infausta morte do Serenissimo Senhor D. Joze Principe do Brazil. Dedicadas ao consternado povo luzitano/ por Luis Rafael Soyé. Lisboa: Na Regia Officina Typografica, 1790, amplamente ilustrada com muitas estampas da autoria de Jerónimo de Barros Ferreira, que evidenciam o estilo barroco e frívolo deste artista, que pessoalmente acho delicioso.
Este nosso Jerónimo de Barros Ferreira foi mestre de Gregório Francisco de Queirós, sobre quem já aqui escrevi e trabalhou em parceria com vários gravadores, nomeadamente José Lúcio da Costa, o coxinho, que executou esta Santa Auta.
Para rematar, este post dedicado aos assuntos piedosos, li num blog vizinho, que o nosso Jerónimo de Barros Ferreira teve também uma história familiar curiosa. Casou com uma senhora de nome Antonieta Engrácia de Deus e Silva, da qual teve dois filhos com os peculiares nomes de Silêncio Cristão e Vigilância Perpétua.
Outra estampa de Jerónimo de Barros Ferreira retirada das noites Jozefinas |
Para rematar, este post dedicado aos assuntos piedosos, li num blog vizinho, que o nosso Jerónimo de Barros Ferreira teve também uma história familiar curiosa. Casou com uma senhora de nome Antonieta Engrácia de Deus e Silva, da qual teve dois filhos com os peculiares nomes de Silêncio Cristão e Vigilância Perpétua.
Só podia ser bibliotecário!!! Eu sabia, ou desconfiava, quando há uns meses comecei a ler o seu blogue, li algures que trabalhava na Câmara de Lisboa, mas devido ao excelente trabalho de pesquisa que o leva a contextualizar as peças que nos mostra de uma forma exemplar, recordava-me a perícia de quem está habituado a trabalhar com a informação. Não trabalhando no ramo, e nem sequer tendo nada a ver com essa área, tenho estado a tirar um curso de Ciências da Informação e da Documentação, daí ter pensado que trabalhava em bibliotecas ou arquivo (tenho uma colega de curso que trabalha no Arquivo Fotográfico da C.M.L.).
ResponderEliminarDesculpe a impulsividade, mas gosto muito de lê-lo, bem como ao seu amigo Manel.
Bom fim de semana,
Ana Silva
Cara Ana
ResponderEliminarMuito obrigado pelo seu comentário muito simpático.
Quase sempre ao serviço do Ministério da Cultura, já fui arquivista, webmaster, trabalhei em exposições de arte e agora sou outra vez bibliotecário, portanto sei um bocadinho de tudo, mas sempre pela rama, isto é, tenho chamado conhecimento enciclopédico.
Estas pesquisas dão-me muito gozo e é um prazer partilha-lhas com outras pessoas, que muitas vezes também contribuem com os seus conhecimentos.
Abraços
Olá Luís,
ResponderEliminarMais uma vez um post muito bem conseguido, com base em pesquisa séria, e com gravuras belíssimas.
E fiquei a conhecer mais um dos seus registos setecentistas de uma santa que eu não conhecia assim como não conhecia a história por trás da lenda das onze mil virgens.
Aqui aprende-se sempre com prazer... o que mais uma vez lhe agradeço.
Abraços
Maria Andrade
ResponderEliminarMuito obrigado!!! Talvez me tenha esquecido de referir que as relíquias desta Santa Auta foram trazidas da Alemanha para Portugal por encomenda da Rainha D. Leonor, a mulher de D. João II e fundadora das Misericórdias. As ditas relíquias ficaram no Convento da Madre de Deus.
Beijos
Luís
Sabe, Luís, eu quando fiz o comentário não me lembrei de referir esse pormenor, mas estava para voltar aqui para o interrogar sobre essa informação que li na legenda e me intrigou. Como muita gente não lê os comentários, acho que era um dado muito interessante a acrescentar ao texto.
ResponderEliminarMaria Andrade
ResponderEliminarTem toda a razão como de costume. Alterei o post e fiz uma referência à Rainha D. Leonor, que deve ter sido a mulher com mais influência na história de Portugal.
Abraços
Luis,
ResponderEliminarDefinitivamente, este deve ser o teu post dedicado aos assuntos sacros mais piedoso que li
"... Casou com uma senhora de nome Antonieta Engrácia de Deus e Silva, da qual teve dois filhos com os peculiares nomes de Silêncio Cristão e Vigilância Perpétua..."
Adorei os nomes, já parece aqueles nomes fabulosos que só existem no Brasil, aquelas combinações impossíveis do tipo:... Excelsa Teresinha do Menino Jesus da Costa e Silva (sem ofensa para a Senhora)..., espero não ofender, mas estes são dígnos de figurar num placar esculpido em mármore.
Um abraço
Equeci do mais importante, a estampa é um espanto :)
Caro José Oliveira
ResponderEliminarOs excessos de devoção levam sempre a nomes disparatados. Na família da minha mãe, onde eram muitos devotos, os nomes eram do género, Francisca da Ressureição, Clemente da Purificação ou Teresa do Menino Jesus (a minha mãe). Modernamente, a mesma falta de moderação está na origem de nomes como Sheila Muriel ou Bruno Vanderley.
Em todo o caso ri-me tanto com o Silêncio Cristão e Vigilância Perpétuas, que não resisti a transcrever essa informação no blog, ainda que não viesse a propósito da estampa.
Abraços
Olá Luis, muitos parabéns pela sua página. Tem realmente artigos muito bons!
ResponderEliminarA propósito deste post, queria-lhe pedir se me pode dar alguma referencia literaria sobre Santa auta e as onze mil virgens. Sou estudante de Historia de Arte e estou a realizar um trabalho sobre esse mesmo assunto mas anda complicada a pesquisa referente a santa auta.
Obrigado e aguardo a sua resposta :)
Ana
Interessante, é a primeira vez que vejo uma santa com meu nome,gostaria de conseguir uma imagem, ou estampa desta.
ResponderEliminarAuta
Cara Auta
ResponderEliminarNo passado, Auta foi uma devoção significativa, como vimos neste post. Portanto, é natural que houvesse muitas crianças chamadas Autas e a minha amiga deve ter ficado com esse nome em homenagem a uma madrinha, ou a uma avó, que por sua vez também já o tinha recebido de outra avó.
Hoje, o culto dos Santos tende a desaparecer e ser substituído pelo culto da Virgem Maria. Subsistem apenas as devoções aos santos principais, como a S. António, S. Pedro ou São Paulo.
Nos alfarrabistas ou nas feiras de velharias consegue encontrar estampas de santinhos, talvez tenha sorte e descubra uma santa auta.
Abraços