Volto hoje a apresentar mais uma peça Vista Alegre com os motivos das florinhas, fabricado muito provavelmente durante o 4º período, 1870-1880, ou talvez ainda numa época mais antiga. Não está marcada com o tradicional VA. Apresenta apenas o número 18, pintado a doirado. Este suposto número com um ponto final levanta-me algumas dúvidas. Estes caracteres não serão as siglas VA esborratadas ou com o dourado esmorecido?
Número 18? |
Mas é mais provável que seja o número da decoração ou uma marca do artista.
Mas apesar de não estar marcada com o típico VA, é óbvio que é Vista Alegre. Basta compara-la com outra cafeteira, que também tenho com a mesma forma e uma decoração semelhante, embora não tão requintada, mas que se apresenta marcada.
As duas cafeteiras: um bom exemplo da delicadeza, sem debilidade, nem afectação |
Este motivo das florinhas desperta-me uma paixão tão grande há tanto tempo que procurei saber mais sobre ele e fui consultar a obra Vista Alegre: porcelanas. – Lisboa: INAPA, 1989. Encontrei um texto muito bem escrito, por uma senhora, Maria de Azevedo Coutinho, intitulado A pintura: imagem da Vista Alegre, que me ajudou a perceber melhor este estilo floral delicado.
Como toda a gente sabe as manufacturas de porcelana europeia surgiram no século XVIII, inteiramente dependentes do patrocínio de casas reais e produziam peças luxuosas, pintadas com o maior requinte por artistas conceituados da época. Os exemplos mais paradigmáticos são Meissen, dependente do Duque do Saxe e Sêvres da Casa Real francesa.
Depois da Revolução francesa e das guerras que se lhe seguiram, o patrocínio real acabou, as encomendas sumptuosas também diminuíram e apareceram fábricas privadas que produziram peças mais baratas e em maior número para satisfazer a procura da burguesia abastada. A nossa Vista Alegre surge precisamente neste período e neste contexto, muito embora em Portugal, nunca tivesse existido no século XVIII uma fábrica de porcelana real, pois como através da nossa rede comercial marítima tínhamos um acesso privilegiado à porcelana da China, a melhor do mundo, nunca sentimos necessidade de a fabricar.
As novas fábricas europeias de porcelana do século XIX com orçamentos mais reduzidos tentaram reproduzir os faustos do século anterior, mas sobretudo através das formas e a grande pintura ficou confinada a pequenas reservas.
Em Portugal, no século XIX, a Vista Alegre não dispõe de tecnologia para moldes arrevesados, nem de dinheiro para contratar grandes pintores. O gosto dos proprietários da fábrica e do público português são também limitados. Por isso a sua produção é caracterizada por formas mais simples e por uma pintura que revela igualmente grande simplicidade.
Esta simplicidade e lirismo tem também a ver com o ambiente familiar e quase campestre da escola de pintura que se foi desenvolvendo na Fábrica. Longe do Porto, Coimbra ou de Lisboa, a serenidade que se vivia em Ílhavo influenciou a estética das suas obras. Criou-se ali uma escola e uma tradição de pintura, que não era muito eficaz nas cenas mitológicas ou temas rocaille à moda de Fragonard, mas ganhou uma grande mestria nos motivos florais. Esta escola, afastada dos centros urbanos é algo conservadora. Mantem-se sempre nas mãos da mesma família, os Pinto Bastos, que se orgulham da qualidade da pintura na Fábrica e acarinham sempre esta arte
Não gosto de concluir nada, porque a vida nunca é linear e nem os desenlaces são perfeitos, mas posso adiantar que uma certa limitação de meios jogou a favor da Vista Alegre, que produziu na época desta cafeteira peças de uma notável delicadeza, mas sem afectação.