domingo, 1 de março de 2020

Uma pinça de açúcar em casquinha


Andar por feiras de velharias é uma tentação constante. Estamos sempre a descobrir objectos do passado, curiosos e bonitos e a bom preço, mas infelizmente não os podemos comprar todos, pois as casas são pequenas e há que reservar o dinheiro, para as coisas realmente úteis, como a compra de um novo aspirador, pois o velho já não limpa nada ou uma obra na casa-de-banho.

Aproveito esse meu ímpeto consumista para oferecer prendas. Em vez de dar uma treta qualquer comprada numa grande superfície, ou numa loja de uma grande cadeia, aproveito os mercados de velharias para adquirir e oferecer uma peça antiga, mais barata, de melhor qualidade que as actuais, e que com o tempo se tornou quase única.



Assim, para oferecer à minha ex-mulher, comprei recentemente uma peça em casquinha, que me pareceu uma pinça de gelo. É um objecto talvez do início do século XX, imitando qualquer coisa do século XVIII, com umas garras muito curiosas, que lembram os pés dos nossos móveis D. João V. Não tem qualquer espécie de punção ou marca para se lhe atribuir uma data ou um fabrico. Nos sites de venda on-line dos Estados Unidos, encontrei peças algumas semelhantes e são tidas como francesas. Mas, para os americanos, que são os últimos francófilos mundo contemporâneo, tudo o que é antigo e bonito é francês…

Imagem amavelmente enviada por uma seguidora deste blog, mostrando um conjunto em casquinha inglesa de pinça e recipiente para conter os cubinhos de açúcar
À medida que fui pesquisando na net, fiquei na dúvida se  era uma pinça de gelo ou de açúcar, pois em muitos países europeus era e é hábito servir aquele adoçante em forma de cubos e claro está, dá muito mais jeito, apanhar os cubos com uma piça do que com uma colher. Aqui, em Portugal é que é costume de servir o açúcar granulado, que se tira do açucareiro com uma colher. Depois já ter publicado, este post, uma seguidora do blog, muito amavelmente esclareceu-me as dúvidas e enviou-me por e-mail a foto de um conjunto completo de pinça e taça para conter os cubos açúcar. Portanto esta pinça é de açúcar.
A pinça antes da aplicação do Pratex
Quando comprei esta peça, estava em mau estado e tinha perdido, quase todo o revestimento de prata. Não que o tom de vermelho dourado que apresentava fosse feio, mas apliquei-lhe um produto, o Pratex, que lhe devolveu parte do revestimento inicial de prata. Procurei não colocar demasiado produto, para que esta pinça de gelo ou de açúcar mantivesse um certo ar antigo.

Estou convencido que será uma boa prenda. O uso de objectos antigos torna sempre quotidiano menos banal e triste.

Depois da aplicação do Pratex

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Um Cristo preto


Na catequese, nos manuais escolares e nos livros de religião e moral, quase todos nós formámos uma imagem de Jesus Cristo como um homem loiro, cabelos escorridos, penteados com um risco ao meio e olhos azuis. Mesmo hoje, em que já não acreditamos em nada, quando nós ocorre, ainda que apenas por breves momentos, que talvez pudéssemos pedir ajuda a Deus, vem -nos sempre à memória esse Cristo das imagens piedosas do passado.

Talvez por essa razão eu goste deste insólito Cristo preto, que o meu amigo Manel me ofereceu. Faz um contraste interessante com as todas beatices do século XVIII ou XIX com que enchi a minha casa, registos de santos, imagens de roca ou medalhões ovais em espuma de mar com representações de Nossa Senhora.
 
É uma peça africana em pau-preto, comprada talvez em Angola ou Moçambique por um soldado em serviço militar, um funcionário público em final de comissão de serviço, ou por um daqueles muitos milhares de portugueses, que construíram as suas vidas em Luanda ou Lourenço Marques. Tenho até ideia de ter vistos filmes antigos dos anos 60 e 70 com artificies africanos a venderem peças de artesanato no chão das ruas de Luanda. Os meus pais, que estiveram em Timor e regressaram de barco, fazendo em escala em Luanda e Lourenço Marques (a actual Maputo) compraram uma ou outra peça africana.

Hoje em dia, essas peças africanas, que os milhares de portugueses, que passaram por África trouxeram nos seus caixotes nos porões do navio são consideradas hediondas e encontram-se no chão das feiras de velharias por tuta-e-meia, e, é pena pois algumas delas são muito interessantes. Mas o passado colonial português é uma coisa mal vista, politicamente incorrecta e quando o morre o cidadão comum, que trouxe esses objectos de artesanato africanos na sua bagagem, os descendentes tratam de os despachar rapidamente.
 
 
Embora não me interesse por arte africana, gosto muito deste Cristo preto, que com a luz solar, ganha reflexos muito interessantes. Até o pó da parede a esfarelar lhe assenta bem na pele escura. Aprecio também a sua expressão serena, de que quem cansado de tantos trabalhos forçados,  pancada e guerras se deixou adormecer para sempre. Recorda-me igualmente "Lágrima de Preta", o poema de António Gedeão, que não consegui deixar de transcrever aqui.

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.




sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Uma estampa de moda portuguesa da década de 30 do século XIX

Cazaca cor de pinhão, botões de metal amarellos; vestido de setim rosa. Lithographia da rua Nova dos Martyres, n.º 12
As gravuras de moda francesas do século XIX aparecem muito nos mercados de velharias. São normalmente estampas, que em tempos fizeram parte de revistas como Le Moniteur de la mode, Journal des demoiselles ou Petit courrier des dames, que eram muito populares entre as classes mais favorecidas, em Portugal, na Europa e nas Américas, numa época, que Paris era a rainha incontestável de todas as modas.

Contudo, gravuras portuguesas de moda desta época são relativamente raras de modo, que quando encontrei esta estampa à venda, que mostro hoje, resolvi não a deixar escapar. Ainda para mais, pareceu-me mais antiga do que é normal encontrar. Não, que eu saiba muito de história da moda, mas quando vi a toilette do cavalheiro, lembrei-me logo do retrato do escritor Almeida Garrett, gravado por Pedro Augusto Guglielmi, em 1844 e que constava de todos os manuais escolares. Almeida Garrett era um verdadeiro janota, sempre bem perfumado, vestido e calçado segundo o último figurino da moda e que não hesitava em espartilhar-se para se parecer com o cavalheiro desta estampa de moda.
Almeida Garrett, gravado por Pedro Augusto Guglielmi, em 1844
Resolvi fazer alguma pesquisa sobre publicações periódicas de moda portuguesas, que tinha a ideia que existiram primeira metade do século XIX e encontrei na Biblioteca Nacional de Portugal O correio das damas : jornal de litteratura e de modas, publicado em Lisboa, na Lisboa, na Typ. Lisbonense, entre 1836-1852 e que se encontra inteiramente digitalizado.

O correio das damas : jornal de litteratura e de modas, Abril de 1836. Foto Biblioteca Nacional de Portugal.
Comecei logo pelo ano 1836 e de com efeito as primeiras estampas deste periódico parecem-me muito com aquela que comprei e são igualmente impressas na Lithographia da rua Nova dos Martyres, n.º 12. Até os caracteres tipográficos usados são iguais. Porém, à medida que fui avançando no tempo, logo em 1837, as estampas desta revista passaram a ser impressas no Almeida, apresentando então um ar um pouco mais sofisticado e no pé de página, a numeração da revista.

Carreguei então a imagem digital da minha gravura no Google e o motor de busca apresentou-me uma centena de resultados de imagens semelhantes, e com algum espanto, encontrei na National Portrait Gallery, de Londres, uma estampa praticamente igual à minha, mas o cavalheiro não consta da imagem e o fundo é diferente. Na figura portuguesa, o fundo é um chão de mosaico e a parede um apainelado, ao passo que na gravura inglesa a jovem elegante apoia-se naquilo que parece ser uma consola barroca. A estampa inglesa foi publicada no The Ladies' Pocket Magazine, em Dezembro de 1836 e apresenta uma legenda muito curiosa sobre este traje, um Paris Evening Dress, isto é, vestido de noite parisiense, que deveria ser confeccionado num cetim rosa estampado.
Paris Evening Dress. The Ladies' Pocket Magazine, Dezembro de 1836. Foto de National Portrait Gallery
 
Na descrição que o site National Portrait Gallery transcreve, aconselha-se as elegantes que mandassem fazer este modelo, a pentearem-se à La Vallière, isto é, com um risco ao meio, cabelo liso no topo e os restantes cabelos caindo em caracóis e cachos artísticos. O termo La Vallière refere-se a uma personagem histórica, Louise de La Vallière (1644-1710), que foi amante de Luis XIV e cujo penteado fez furor na corte de França e foi copiado por toda a Europa. A pobre Louise veio mais tarde a arrepender-se seriamente desta ligação ilícita, cortou os seus belos caracóis e fez-se freira carmelita, tomando o piedoso nome de Sœur Louise de la Miséricorde. Porém a fama do seu penteado permaneceu ao longo dos tempos e em 1836 era outra vez moda entre as elegantes de Paris.

Louise de La Vallière, a amante de Luís XIV, cujo penteado fez furor. Jean Nocret, Palácio de Versalhes
Em suma, é muito provável, que esta minha estampa tenha sido impressa entre 1836 ou 1837 e levou às damas portuguesas as últimas modas da Europa. Quando escrevi este post, não tinha conseguido apurar em que publicação periódica portuguesa saiu. Posteriormente um seguidor deste blog, que está a fazer uma tese de mestrado sobre este assunto, o Ricardo Braga informou-me que esta gravura foi publicada em O Recreio: jornal das Famílias (Lisboa, 1835-42), no tomo II, n. °12 de dezembro de 1836, o que prova que a imprensa periódica portuguesa seguia a par e passo ás últimas modas da Europa.


A minha estampa foi publicada no periódico O Recreio: jornal das Famílias (Lisboa, 1835-42), no tomo II, n. °12 de dezembro de 1836


Relativamente à estampa inglesa, não sei se foi a fonte de inspiração para o autor desta gravura. Tenho o vago palpite que haverá uma terceira estampa, francesa com toda a probabilidade, que inspirou os portugueses e os ingleses.



sábado, 8 de fevereiro de 2020

Uma terrina de faiança da região do centro


Nos últimos tempos tenho escrito pouco sobre faiança. Não porque faltem peças para mostrar, pois o meu amigo Manel tem imensas terrinas, bules e pratos de faiança portuguesas do século XIX, mas pelo motivo, de que sabemos muito pouco sobre elas. São louças sem qualquer marca e parece-me um bocadinho inútil estar a escrever, coisas como esta peça parece-nos do Norte ou esta de Coimbra, apenas por mera intuição. Ultimamente só escrevo de faiança, quando sai um livro ou um estudo novo sobre o tema, que nos esclarece sobre uma caneca ou uma travessa da qual o Manel e eu não sabíamos nada. Mas mesmo assim, a tentação é grande de escrever sobre peças das quais nada sei, quanto mais não seja para arrumar ideias.

Desta vez apresento-vos uma terrina de faiança de grandes dimensões, decorada com um bonito motivo floral e que o meu amigo Manel recebeu da sua avô materna, que por sua vez a herdou da sua mãe. Se a avô do Manel nasceu nos primeiros anos da década de 90 do século XIX, pode-se especular que esta terrina será talvez dos últimos anos do XIX ou do início do XX.


A terrina é pesadas e com um certo ar grosseiro, própria para famílias, que queriam objectos sólidos e duradouros, capaz de resistir a diferenças altas de temperatura e a lavagens frequentes. No entanto, a decoração é muito cuidada. Ostenta uma faixa floral, com coloridos vivos, que me recorda os bordados de alguns trajes regionais, talvez aqueles aventais que se vestiam em dias de feira ou de procissão ou um lenço dito de namorados.

Contracapa da obra Bordados tradicionais de Portugal / Maria Clementina Carneiro de Moura. - Lisboa : Comp. de Linha Coats & Clark, [D.L. 1962].

A pasta é amarelada, o que é uma característica da região do centro, segundo quase todos os manuais de faiança. Com efeito encontrei uma ou outra terrina com um formato muito semelhante a esta, a primeira no catálogo de uma pequena exposição, intitulado Humildes faianças: louça tradicional de uso comum no Concelho de Arganil. Arganil: Câmara Municipal, 2007 e está classificada como louça de Coimbra a segunda, no livro de António Pacheco Louça tradicional de Coimbra: 1869-1965. Coimbra: DGPC, 2015. Esta última terrina tem um formato idêntico à do Manel e está marcada como monograma da fábrica Viúva Alfredo de Oliveira, de Coimbra, provavelmente feita pouco depois de 1936.

A terrina reproduzida na obra Humildes faianças: louça tradicional de uso comum no Concelho de Arganil. Arganil: Câmara Municipal, 2007

A terrina reproduzida na obra Louça tradicional de Coimbra: 1869-1965. Coimbra: DGPC, 2015
A terrina do Manel não apresenta nenhuma marca de fábrica. No tardoz, ostenta apenas um número, o 2, que creio eu que se deve referir ao tamanho da peça e não ao fabricante. Recordo-me que quando há quase 40 anos trabalhei numa loja de loiças e utilidades domésticas na Baixa Lisboeta e as panelas tinham sempre no fundo marcado um n.º com o diâmetro da peça.


Apesar de ter encontrado uma terrina da Viúva Alfredo de Oliveira muito semelhante a esta, é um bocadinho arbitrário atribuir-lhe o fabrico, pois quem se dedica ao colecionismo de faiança portuguesa, sabe bem como os diversos fabricantes usavam os mesmos moldes e provavelmente décadas a fio. Por essa razão também complicado, data-la. Talvez tenha sido produzida algures nas três primeira décadas do século XX.


Em suma, esta terrina do Manel, será um fabrico de Coimbra ou da região à volta desta cidade, onde existiram fábricas hoje pouco conhecidas. Ainda não há muito tempo a Maria Isabel, apresentou numa seu blog https://leriasrendasvelhariasdamaria.blogspot.com/2017/01/terrina-da-fabrica-telles-de-cantanhede.html uma terrina de uma fábrica em Cantanhede, de um tal Sr. Manuel José Teles, cuja existência andava esquecida de todos.

Em todo o caso, quem decorou esta terrina, não lhe faltava talento e a orla florida de cores vivas tem toda a garridice de um traje popular português.


sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Um jovem malandrete: retratos fotográficos de estudantes da Universidade de Coimbra em 1900


Desde há cerca de um ano que me dedico a estudar os dois álbuns fotográficos da família, contendo retratos tirados mais ou menos entre 1860 e 1902. Tenho também procurado consultar bibliografia sobre retrato fotográfico em Portugal no século XIX e um dos textos mais interessantes sobre o tema foi o de Francisco Queiroz (*1), que escreveu sobre os álbuns fotográficos de família em particular, chamando a atenção para a importância de os relacionar com outros álbuns de família da mesma região geográfica. Mais ou menos entre 1860 e 1900, as pessoas mais afortunadas tiravam o seu retrato fotográfico em formato carte-de-visite, guardavam um exemplar para si ofereciam os restantes sete exemplares pelos seus parentes ou gente do seu círculo social. Em teoria, os retratos do álbum de uma determinada família encontrar-se-ão também nos álbuns de outras famílias aparentadas entre si, do mesmo meio social e região geográfica.

Por essa razão, tenho vasculhado os arquivos com colecções fotográficas on-line à procura de retratos fotográficos do XIX e nas feiras de velharias sempre que vejo álbuns carte-de-visite, ou mesmo fotografias do século XIX, lanço-me sobre eles na esperança de encontrar um retrato igual aos que tenho por identificar, só que com uma legenda ou uma dedicatória, que me permitam reconhecer aqueles senhores de bigode retorcido ou uma daquelas damas vestidas com metros e metros de seda. No entanto, não tenho tido muita sorte, pois normalmente frequento à Feira de Estremoz e os álbuns e fotografias que encontro à venda pertenceram a famílias do Sul, de Lisboa ou mesmo do estrangeiro. O que eu realmente precisava era de comparar os dois álbuns de fotografias que tenho, com o de outras famílias transmontanas de Chaves, Valpaços, Montalegre, Vinhais ou Vila Real.
 
A fotografia do álbum do meu bisavô.
Há pouco tempo, encontrei à venda um desses álbuns, datado mais ou menos da mesma época, daquele que foi formado pelo meu bisavô e a semelhança deste, estava cheio de retratos de condiscípulos da Universidade de Coimbra do proprietário original. Folheei o dito livro e imediatamente encontrei um finalista do curso de Direito de Coimbra, que constava também do álbum do meu bisavô, um jovem de bigode, com um certo ar de malandrete. Ainda tentei comprar o álbum inteiro, pois talvez houvesse mais retratos iguais, mas a senhora só vendia as fotografias à peça, pois assim fazia mais dinheiro.
 
A fotografia que comprei na feira de velharias de Estremoz

Esta fotografia que comprei é de maiores dimensões, do que aquela que eu tenho. É o chamado formato cabinet, ou carte cabinet (*2) , como dimensões médias de 10,8×16,5cm, portanto, maior que o carte-de visite. Os dois retratos foram executados pelo mesmo estúdio, o J. Gonçalves, também designado por Centro Fotográfico Académico, com sede na Avenida Navarro de Pais (estrada da Beira), Coimbra e que tinha também um atelier na Figueira da Foz, a Photographia Europa.
 
A assinatura ilegível
 
Apesar de ambas as fotografias estarem dedicadas, não conseguia ler a assinatura. O primeiro nome parecia-me Arthur, mas o apelido era indecifrável. Este jovem que foi condiscípulo do meu bisavô, José Maria Ferreira Montalvão, esceveu seguir ao nome, Mousão, ou Monsão.
 
José Maria Ferreira Montalvão, meu bisavô, no momento da sua formatura. em 1902. Foto de Pinho Henriques, Coimbra
 
Pensei ainda que fosse um título nobiliárquico, pois na altura era hábito colocar a seguir ao nome próprio o título de nobreza entre parêntesis (mesmo hoje em dia ainda há quem faça isso). Pesquisei na net por viscondes de Monção, mas os nomes desses fidalgos não tinham nada a ver com o deste jovem com ar de quem partiu muitos corações em Coimbra. Pesquisei então, no arquivo da Universidade de Coimbra, pelas expressão  Artur Direito 1902 ( o ano em que o meu bisavô terminou o Curso de Direito), mas os resultados foram  nulos. Enquanto fazia estas buscas chegou uma colega, a Conceição Borges de Sousa, que me sugeriu para pesquisar na base daquele arquivo, pelo nome do Senhor a quem o jovem em causa, dedicou a fotografia, um tal Aurélio de Vasconcellos e recuei a data para 1900 e consegui descortinar então, que o proprietário do álbum à venda na Feira de Estremoz foi Aurélio de Almeida Santos e Vasconcelos, que cursou Direito entre 1895 e 1900 (*3). Lembrei-me então, que o Arthur poderia ter concluído o curso também em 1900, um pouco mais cedo que o meu bisavô e procurei na base de dados do arquivo daquela Universidade por Artur Direito 1900 e imediatamente percebei, que o galante jovem de bigodes só poderia ser Artur Anselmo Ribeiro de Castro, nascido em Macedo, Monção e que estudou direito em Coimbra entre 1898 e 1900 (*4). A assinatura que eu não conseguia ler, era afinal a de Arthur Anselmo.
Verso da fotografia, com a dedicatória de Artur Anselmo ao meu bisavô
Este Artur Anselmo, que andou pela Universidade de Direito em Coimbra 1898 e 1900, a julgar pelos registos oficiais, era das relações do meu bisavô, José Maria Ferreira Montalvão, a quem dedicou o seu retrato, mas muito mais próximo de Aurélio de Vasconcelos, pois a este, escreveu no verso da fotografia, que lhe ofereceu, um extenso e sentido texto. Aliás é natural, que isso tivesse acontecido. O Artur Anselmo era um partidário da República, que dirigiu um jornal republicano em Coimbra, a Voz do porvir, em 1897 (*5) e Aurélio de Vasconcelos comungava também do mesmo ideal político, apesar de ser um fidalgo, morgado de Sortelha. Portanto, os dois eram republicanos, ao contrário do meu bisavô, que era monárquico, embora nunca tenha sido um activista político, como o seu pai, o Padre José Rodrigues Liberal Sampaio.
Artur Anselmo dedicou um extenso e sentido texto a Aurélio de Vasconcelos
O senhor que formou o álbum do qual eu comprei a fotografia, Aurélio de Almeida Santos e Vasconcelos era natural de Meda e foi morgado de Sortelha(*6). Os senhores, que tinham à venda este álbum, fazem várias feiras de velharias do País, mas são também da Beira, mais precisamente do Fundão e é natural, que tenham comprado o recheio da casa de algum dos seus descendentes de Aurélio de Almeida Santos e Vasconcelos, de onde constaria este álbum.

Relativamente ao excelente texto de Francisco Queiroz, intitulado História da Fotografia em Portugal, no século XIX: os retratos "carte de visite”, que sublinha a importância de relacionar os álbuns carte-de-visite de várias famílias da mesma região, eu acrescentaria que seria do maior proveito para a memória do País e da Universidade de Coimbra, relacionar todos os álbuns com fotografias de estudantes de Coimbra, de modo a formar um extenso repositório de imagens de alunos da Universidade de Coimbra, no último quartel do século XIX. Toda elite portuguesa da época passou por lá.
 
As duas fotografias: a primeira formato carte-de-visite, do álbum do meu bisavô; a segunda formato cabinet, ou carte cabinet, comprada na feira de Estremoz
 
Ligações consultadas:

(*1) História da Fotografia em Portugal, no século XIX: os retratos "carte de visite” / Francisco Queiroz http://www.queirozportela.com/fotografia.htm

(*2) https://fr.wikipedia.org/wiki/Format_cabinet

(*3) https://pesquisa.auc.uc.pt/details?id=209256&ht=aur%c3%a9lio%7Cvasconcelos%7Cdireito%7C1900

(*4). https://pesquisa.auc.uc.pt/details?id=290604&ht=artur%7Cdireito%7C1900

(*5) https://digitalis.uc.pt/pt-pt/fundo_antigo/voz_do_porvir_hebdomadario_republicano_red_arthur_anselmo_ribeiro_de_castro_et_al

(*6). https://capeiaarraiana.pt/2014/09/21/78688/

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Resgatando fotografias do anonimato

 
Este retrato carte-de-visite não tem identificação do fotografo, do retratado, nem tão pouco uma dedicatória

Desde que uma prima minha me ofereceu dois álbuns fotográficos de família, constituídos mais ou menos entre 1865-1900, a identificação daquela galeria de personagens tornou-se mais ou menos uma obsessão permanente. Faço pesquisas em arquivos que possuem colecções de fotografia digitalizadas, consulto estudos genealógicos, escrevo e-mails a familiares ou descendentes dos retratados e publico notícias em fóruns e ainda dou voltas a cabeça, pensando que outros meios poderei encontrar para identificar aquelas personagens retratadas há quase 150 anos e das quais não há uma legenda, uma dedicatória, uma pista sequer, que me esclareça sobre quem foram e o que fizeram.
 
Este segundo retrato carte-de-visite também não apresenta qualquer identificação, mas trata-se da mesma pessoa que anterior fotografia
 

Muitos desses retratos fotográficos teimam em guardar os seus segredos, outros, aos poucos, vão se revelando e começam a ter um nome. Foi o que aconteceu com duas fotografias de um cavalheiro distinto, tiradas talvez em meados dos anos 60 do século XIX ou eventualmente já na década de 70 desse mesmo século. Os dois retratos não têm qualquer identificação da pessoa, do estúdio fotográfico, nem tão pouco uma dedicatória. No entanto, desde logo pareceu-me certo que os retratos eram da mesma pessoa e que se tratava de um Montalvão, pois o senhor apresentava o mesmo tipo fisionómico da minha trisavô, a Maria do Espírito Santo Ferreira Montalvão (1856-1902), e do seu irmão o General António Vicente Ferreira Montalvão (1840-1919). Enviei cópias destas duas fotografias, bem como a de um senhor em uniforme militar, à minha prima, Fernanda Montalvão Hof, bisneta do general e imediatamente reconheceu como seu bisavô o jovem militar, mas quanto ao personagem dos outros dois retratos, achou que seria certamente um Montalvão, mas não o identificou.
 

Os dois irmãos Montalvão, a Maria do Espírito Santo e o António Vicente. Os dois apresentam os mesmo traços de família, os olhos claros, o mesmo formato de orelhas.

Depois desta resposta, comecei a pensar que este senhor poderia ser o outro irmão da Maria do Espírito Santo e do António Vicente, o meu tio trisavô, Miguel Ferreira Montalvão (1838-1890), que morreu louco, rodeado de livros, um personagem acerca do qual sei tão pouco e tenho tanta curiosidade. Creio que todos nós temos sempre mais interesse pelos indivíduos, que saíram da normalidade social e este meu antepassado foi um desses casos. Começou a sua carreira muito bem, fez o curso de Direito em Coimbra, onde assistiu a umas das grandes revoltas estudantis, daquela universidade, a Rolinada (1864), regressou a Chaves, onde exerceu advocacia, foi administrador do Concelho, Juiz de Direito Substituto e em 1890, morre louco, rodeado de livros, sem querer ver ninguém. Era um homem culto e terá sido através dele, que o meu trisavô, Padre José Rodrigues Liberal Sampaio foi introduzido no Solar de Outeiro Seco, pois os dois partilhavam o gosto pelos livros e pela leitura. Claro, uma coisa leva à outra e o Padre acabou por se envolver com a irmã, relação da qual nasceu um filho, o meu bisavô, de que quem eu descendo. Isto é, se fizermos fé na obra 5 contos …em moeda corrente. . / Montalvão Machado - Porto: Livraria Progredior, 1961, que narra de uma forma muito romanesca os amores do padre e da fidalga.
 
Os símbolos militares
 
 
António Vicente Ferreira Montalvão

Porém, como a história nem sempre é aquilo, que nós desejávamos que ela fosse, resolvi pedir mais opiniões sobre os retratos deste cavalheiro ao meu amigo Humberto Ferreira, que além de ser sempre prestável, é um homem observador, um coleccionador de tudo o que diga respeito à fotografia e muito conhecedor dos assuntos de Outeiro Seco, Concelho de Chaves, onde viveram estes personagens que mencionei. O Humberto viu as fotografias e foi de opinião que no segundo retrato, o distinto cavalheiro envergava um traje militar, chamando-me a atenção para os botões do traje e para as mangas, idênticos ao do retrato de António Vicente Ferreira Montalvão, na altura um jovem alferes-aluno.
 
O símbolo da artilharia, a bombarda.
Resolvi então enviar cópia das imagens ao meu irmão, oficial reformado, que foi da mesma opinião do Humberto e ainda foi mais longe, identificando nos botões, o símbolo da artilharia, a bombarda. Portanto, estes dois retratos são efectivamente do António Vicente Ferreira Montalvão, cuja área militar, era precisamente a artilharia.


Fiquei satisfeito por ter resgatado mais duas fotografias do silêncio e do anonimato.

António Vicente Ferreira Montalvão (1840-1919)

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Nereidas e Tritões por Charles Le Brun


Bem sei que esta estampa não foi propriamente uma pechincha, mas pareceu-me desde logo uma coisa com qualidade, com uma moldura adequada, pequenina e ficava a matar na minha sala de jantar e lá paguei a quantia pedida e voltei todo satisfeito para casa com ela dentro da mochila.
 
Representa um tema da mitologia clássica, o que serve bem para variar de tantos santos, cristos e virgens que decoram a minha casa. Enfim, tenho que começar a pensar nos meus filhos, que um dia herdarão a tralha toda da minha casa e não acham ainda grande graça à arte sacra.
 
Para tentar identificar esta estampa, fotografei-a primeiro e depois fiz up-load desse ficheiro no google imagens e mediante um clic o motor de busca vasculhou num minuto toda a internet e descobri imediatamente, duas ou três páginas com imagens iguais, que me permitiram identificar a gravura.
Folha de rosto da obra Recueil de divers Desseins de Fontaines et de Frises maritimes Inventez et dessignez par Monsieur Le Brun premier Peintre du Roy. Foto bibliothèque numérique de l’Institut National d’Histoire de l’Art
 
Na bibliothèque numérique de l’INHA (Institut National d’Histoire de l’Art ) percebi que esta estampa fez parte de uma obra, o Recueil de divers Desseins de Fontaines et de Frises maritimes, impressa em Paris, por Jean Audran em data incerta, embora naquela biblioteca francesa situem a sua publicação entre 1727-1756. Como o próprio nome indica, esta obra trata-se de um compilação de desenhos de fontes desenhadas pelo célebre Charles Le Brun (1619-1690) e que se destinavam originalmente aos jardins do Palácio de Versalhes, em França, mas que foram rejeitadas por serem demasiado barrocas, numa época em que o gosto do rei Luís XIV já tinha evoluído numa direcção mais clássica e sóbria. Com efeito, estes projectos para fontes de Le Brun são de um barroco muito romano, mas confesso que me delicio a imagina-las construídas.
 
Uma das imagens da obra Recueil de divers Desseins de Fontaines: a fonte de Perseu e Andrómeda. Foto de https://bibliotheque-numerique.inha.fr/
Esta estampa corresponde a um desenho de Charles Le Brun feito na segunda metade do século XVII e encontrava-se na última folha do Recueil de divers Desseins de Fontaines, onde além desta imagem constavam mais outras duas. Numa época que desconheço, alguém, talvez um alfarrabista retalhou o Recueil e vendeu as estampas em separado para fazer mais dinheiro.
A minha estampa fazia parte de uma folha com mais duas imagens. Foto de https://bibliotheque-numerique.inha.fr/
A gravura apresenta no canto inferior esquerdo as iniciais C.L.B., correspondentes ao nome Charles Le Brun, Contudo a leitura das iniciais seguintes C.P.R. confundiram-me um bocado, pois não correspondiam às do nome do impressor Jean Audran, nem do outro gravador, que colaborou na obra, Louis de Châtillon (1639-1734). Enfim, fiz mais umas pesquisas e percebi que C.P.R. são as iniciais da expressão latina, Cum Privilegio Regis, o que quer dizer, com o privilégio real. Enfim, por vezes esqueço-me que na primeira metade do século XVIII o latim era ainda uma língua de comunicação entre as pessoas cultas da Europa.
C.L.B. e C.P.R. Estas inicias são o desdobramento de Charles Le Brun cum privilegio regis
 
Como referi no início, esta estampa é uma representação de figuras da mitologia da antiguidade clássica, uma cena com Nereidas, isto é, umas ninfas marítimas, que aparecem normalmente montadas em golfinhos e os Tritões, outras divindades do mar, com metade do corpo humano e a outra metade peixe. No centro há uma concha, onde um putti, segura em cada mão uma flor de Liz, o símbolo real francês, certamente uma alusão à grandeza de Luís XIV, ao qual as nereides e os tritões vem prestar homenagem
Uma nereida
Uma alusão à grandeza de Luís XIV, ao qual as nereides e os tritões vem prestar homenagem
O tritão

É curioso observar que Charles Le Brun usou uma convenção artística vinda da antiguidade clássica para representar os tritões e as nereidas, conforme se pode comprovar em mosaicos de vilas romanas, que sobreviveram até aos nossos dias. Realmente houve temas artísticos que permaneceram imutáveis durante séculos.
Mosaico romano com a representação de uma nereida
 
Mosaico romano com a representação de um tritão
Em suma, esta estampa foi impressa em Paris entre 1727-1756, fazia parte da obra Recueil de divers Desseins de Fontaines et de Frises maritimes, realizada a partir de desenhos de Charles Le Brun da segunda metade do século anterior e evoca todos os esplendores do Grand Siècle, expressão, que designa o reinado de Luís XIV. 

Ligações consultadas:

https://bibliotheque-numerique.inha.fr/collection/item/36638-recueil-de-divers-dessins-de-fontaines-et-de-frises-maritimes?offset=1

http://arts-graphiques.louvre.fr/detail/oeuvres/1/207833-Fontaine-de-la-victoire-dApollon-sur-le-serpent-Python

https://library.princeton.edu/versailles/item/872