segunda-feira, 15 de novembro de 2010

S. Sebastião: da ingenuidade à perversão


Este singelo e ingénuo S. Sebastião foi comprado na feira-ladra, num episódio que já contei aqui, a uma rapariga da chamada esquerda elegante, que achava os santinhos umas coisas tão atrozmente feias que me vendeu uma meia dúzia deles por um preço tão barato que é até é feio contar.

O pequeno registo, que não tem o nome e o local do impressor, deverá datar de finais do Século XVIII ou talvez inícios do XIX, pois apresenta uma moldura já ao gosto clássico, característico do reinado de D. Maria I. A representação do S. Sebastião da gravura é muito ingénua, mas obedece perfeitamente ao modelo iconográfico mais divulgado para este Santo. Vestido com uma túnica sumária, S. Sebastião está amarrado a uma árvore e tem o corpo perfurado por setas.

A formação do culto a este santo extremamente popular na cristandade é feito de histórias muito curiosas, que vale a pena aqui explorar um pouco.

Por volta do início do Século IV ou talvez finais do Século III, Sebastião nasceu na antiga Gália, na região de Narbonne e terá ido para Milão, onde se fez Cristão. Tornou-se oficial do exército pretoriano e caiu nas boas graças de Diocleciano, o imperador romano, que ficou na história como o responsável pela mais sanguinária perseguição aos cristãos de toda a história desta religião. Acontece que o nosso Sebastião desobedecia ao Imperador e incentivava os prisioneiros cristãos a conservarem a sua fé e ainda convertia mais uns quantos pelo caminho.

O inevitável aconteceu, Diocleciano descobriu tudo e ordenou aos seus soldados que o executassem, trespassando-o com flechas. Segundo a lenda, os arqueiros que o estimavam muito, evitaram atingir-lhe e o coração, de modo que Sebastião sobreviveu e foi recolhido e tratado por uma mulher, S. Irene, conforme se pode ver neste quadro de Georges La Tour, que está no Louvre.

Sebastião era obstinado e estava imbuído de uma fé nova, que hoje nos parece estranha e inútil, mas que no século IV, movia os melhores cidadãos romanos a actos heróicos e dirigiu-se a Diocleciano recriminando-o pela crueldade usada contra os Cristãos. Claro, O Imperador mandou-o executar a golpes de bastão, como podemos ver em baixo, na obra anónima do Museu Nacional de Arte Antiga e desta vez o pobre santo não sobreviveu ao martírio e o seu corpo foi atirado à cloaca máxima.

A devoção ao Santo foi crescendo e como aconteceu muitas vezes no Cristianismo, associou-se e sobrepôs-se a um culto pagão já existente, neste caso o de Apolo, o Deus arqueiro e da Medicina, invocado contra a peste. Por outro lado, as pessoas associavam as flechas à peste negra e se o S. Sebastião tinha sobrevivido às setas, então a sua invocação poderia proteger as pessoas daquela terrível doença. E Assim, a principal função de S. Sebastião, sobretudo depois das grandes crises de peste bubónica, que vitimaram um terço dos europeus no Século XIV, será a de santo protector contra aquela epidemia, o que explica a enorme popularidade da sua devoção por toda a Europa.

S. Sebastião por Sebastiano del Piombo, Século XVI, Museu do Louvre


Na arte, a representação de S. Sebastião foi evoluindo, até chegar aos dias de hoje. Nos primeiros tempos do cristianismo, o Santo era representando como um homem maduro, mas a partir do Século XIV, ou seja depois das grandes epidemias da peste, impõe-se a iconografia actual, do santo amarrado, sumariamente vestido e crivado de flechas, Esta imagem vai evoluindo pela renascença e pelo Barroco no sentido de S. Sebastião ser representando como um homem com um corpo jovem e cada vez mais belo. No fundo, os artistas do renascimento e do barroco encontram no tema de S. Sebastião a oportunidade de representar um nu masculino em todo o seu esplendor, à maneira da antiguidade clássica, que a temática da crucificação não lhes permitia fazer de todo. Aparecem então esculturas de S. Sebastião que são magníficos nus, ou óleos verdadeiramente sensuais como este do século XVII, de Annibal Carraches do musée de Soissons, em França.

De tal forma o tema do belo jovem quase se nu, se tornou popular entre os grandes escultores e pintores europeus, que modernamente S. Sebastião se tornou um ícone da cultura gay. Se nos abstrairmos da conotação religiosa de santo protector contra a peste, o que vemos é um jovem quase nu, contraindo-se lascivamente da dor e prazer provocada pela penetração das setas, imagem esta, que a cultura gay obviamente se apropriou, se vê na obra dos artistas franceses Pierre et Giles, os reis da arte kitch ou o fotografo Aleksandar Tomovic.


Enfim, comecei com a ingenuidade e acabei na perversão.

11 comentários:

  1. Eu tenho especial carinho por S. Sebastião, por ser o padroeiro da minha amada cidade natal, "São Sebastião do Rio de Janeiro".
    E sua imagem é de uma graciosa beleza ingênua. Gostei muito.
    abraços!

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  2. Pois, isto foi de um extremo ao outro.
    Como sabes os "S. Sebastiões" abundam aqui por casa, pois foi a primeira história da hagiografia cristã que me contaram em criança, mas omitiram o facto de que afinal ele tinha sobrevivido à saraivada de setas que recebeu e com que ele costuma ser representado (alguns mais se assemelham a passadores).
    Já não sei se me devo regozijar pela sobrevivência do homem tendo em vista a sorte que o esperava no final.
    Mais valera que tivesse ido desta para melhor logo de início!
    Há bens que vêm por mal!
    Deve ter contribuído para a sua fama de santo homem (santidade "oblige"!), mas eu preferiria ser santo "noutra freguesia"!
    Traz-me à lembrança uma das igrejas que mais gosto em Lisboa, S. Vicente de Fora, que pelo traço do bolonhês Filippo Terzi, foi mandada erigir pelo Austria, Filipe II, em honra do sobrinho, El-rey D. Sebastião, morto em Alcácer-Quibir! E não há que enganar, pois bem lá no topo, os capiteis ostentam todos conjuntos de setas, o atributo do santo.
    Foi uma manobra para apaziguar os portugueses e cair nas suas boas graças ... não foi debalde!
    Manel

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  3. Caro Fábio

    É verdade o Rio de Janeiro foi fundado oficialmente no dia 20 Janeiro de 1502, dia de S. Sebastião. Realmente a cidade nasceu abençoada, não só com uma natureza espantosa, mas também com uma série de nomes bonitos.

    Abraços

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  4. Caro Manel

    Quando se reconstruiu a igreja S. Vicente-de-Fora a peste negra ainda era uma ameaça real e devotos como eram os Filipes, creio que as setas foram mandadas colocar com genuína fé. Não foi o Filipe II que mandou construir o Escorial com uma planta de tal forma desenhada, que sugeria a grelha de S. Lourenço, o patrono da convento?

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  5. Olá luís
    S.Sebastião é para mim a segunda romaria depois do S.João no Porto que me lembro ir de tenra idade.Enquanto a primeira fui a convite de uns tios vindos de Angola com 5 aninhos acabados de fazer, estreámos um Peujeut 404 , preto, novo que tinham ido buscar à Alemanha.
    O que me lembro da festa, das luzes,dos martelinhos,dos enfeites em papel de todas as cores e eu vaidosa na minha saia pregueada novíssima verde raiada de brancos, então a caminho não parámos na modista para eu lá a vestir!
    Bem, o S.Sebastião é uma recordação mais saborosa, fui de charrete com os meus avós paternos, nunca me esqueci das rodas altíssimas e do banquinho, o meu avó de colete a rebentar os botões atravessado com a corrente de oiro e relógio no bolsinho, a minha avó de xaile de seda preto, alta, formosa de pele calva, eu pequenixota, 7 anitos.A estrada alcatroada terminava entre a casa deles e a nossa ali junto à fonte do Ribeiro da Vide,todo o caminho a ouvir o barulho ensurdecedor das rodas de ferros no maquedame até Albarrol, uma aldeia da freguesia de Pousaflores ali a 4 km de Ansião. A mula lustrosa, com arreios em cabedal, a manta de lã sobre as pernas, era 20 de Janeiro, dia de S.Sebastião, pelo caminho ouvi estórias, olha a Lagoa,o mar já esteve aqui há muitos anos, ali há frente há outra, este terreno é nosso a estrada dantes passava por ali adiante, um caminho estreito, agora fizeram este mais largo que dividiu a nossa fazenda, ainda ficámos com o bico do terreno que pega com a escola.
    Os avós leiloaram uma fogaça com chouriças, uma tradição e ferraduras de canela e erva doce.Deram-me uma nota para dar de esmola ao Santo, no pedestal do pequeno altar lá estava ele trespassado com setas, arrepiei, coitadinho!
    A tarde caía cedo, viemos de volta, cumprimos a tradição, ouvi foguetes, cansadita aninhei-me entre os dois e nas franjas do xaile da avó entrelacei os deditos, tão macias e delicadas eram, adormeci!
    Desculpe Luís...acordei tarde, esmorecida, sorri com o post, libertei-me!
    Beijos
    Isabel

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  6. Cara Maria Isabel

    Gostei muito da forma como comentou o primeiro tópico deste post, a ingenuidade, falando da sua infância e das recordações de uma antiga romaria, das saia de pregas e da charrete.

    Beijos

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  7. Caro Luís,
    Não sei se haverá assim tanta ingenuidade nestas representações de santos semi-nus durante o suplício, mesmo nos mais antigos e mais populares como o seu registo de S. Sebastiâo. Penso muitas vezes se não seria uma forma de os fiéis terem acesso à contemplação de corpos nus, geralmente masculinos, sem terem de se penitenciar depois pelo pecado da luxúria.
    Se calhar sou eu que sou perversa, mas ao apreciar a magnífica pintura do séc. XVI, de autor anónimo mas proveniente de um convento, o "Inferno" do Museu Nacional de Arte Antiga, a cena toda sugere-me, perdoe-se-me o sacrilégio, um enorme bacanal sado-masoquista.
    LOL

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  8. Quanto ao último S. Sebastão da série q mostrou, tem virtudes para entusiasmar qualquer devoto(a)...
    Um abraço

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  9. É isso mesmo Luís, Filipe II mandou construir o Escorial para comemorar a vitória sobre os franceses em S. Quentin, no dia de S. Lourenço, pelo que a planta da edificação faz lembrar um pouco o instrumento de martírio daquele santo, mas que, para além de resdência real e edifício religioso, serviu também de mausoléu aos Austrias, a começar por Carlos V e uma belíssima (a julgar pelo retrato que dela fez Ticiano) portuguesa por quem nutro algum respeito, Isabel de Portugal, esposa do último.
    Filippo Terzi, segundo algumas fontes (Segurado faz alusão a este facto na sua obra sobre S. Vicente de Fora) terá tido conhecimento próximo, se não mesmo "in situ" da produção do seu contemporâneo, Juan de Herrera, e da sua obra máxima, o Escorial (não foi ele que o iniciou, mas terminou-o), que com ela iniciou a denominada escola herreriana, tal o impacto que teve no panorama construído ibérico!
    Mas não sei de fonte segura se Terzi terá conhecido pessoalmente Herrera, no entanto pode-se ponderar esse facto.
    Terzi acompanhou o malogrado D. Sebastião e foi feito prisioneiro e resgatado por D. Henrique, o último rei da célebre dinastia de Avis, após o que viveu até ao final dos seus dias aqui em Portugal.
    Manel

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  10. "Sebastião era obstinado e estava imbuído de uma fé nova, que hoje nos pareça estranha e inútil" - fale por si, sff. Obrigado.

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  11. Caro Lipe

    Obrigado pelo seu comentário.

    Efectivamente falei por mim. Este blog é aliás o espaço das minhas opiniões pessoais.

    Abraço

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