Já pouco me lembro da cozinha do Solar de Outeiro Seco. Parecia-me enorme e escura. Nas poucas férias que lá fomos, à noite o meu irmão e eu costumávamos brincar junto ao fogo, retirando gravetos queimados na ponta, que fingíamos fumar. Éramos sempre repreendidos por estarmos tão junto do fogo, pois diziam-nos que íamos fazer xixi na cama. Ainda hoje me pergunto se haverá algum fundo de verdade dessa advertência.
Em todo o caso não experimentei a vivência da cozinha no tempo em que servia uma grande família e uma casa agrícola com muitos trabalhadores. Para esse efeito sirvo-me da memória do meu pai, que cuidadosamente anotou tudo o que se lembrava desta divisão. Eu preferiria que ele tivesse sido mais minucioso no Museu, mas as recordações de juventude e infância dele foram certamente mais saborosas na cozinha, onde durante todo o período das férias do Natal, a família e empregados se reuniam, em volta da enorme chaminé, onde ardia um toro de carvalho, para rezar uma “coroa ou para jogar ao rapa a pinhões.
O meu pai descreve detalhadamente e com enorme prazer a cozinha enegrecida pelo fumo, onde nos tectos havia um céu de enchidos típicos da região, alheiras, sangueiras, chouriços de pão, salpicões, linguiças, palaios, morcelas, bem como ainda o os presuntos e os untos.
A cozinha tinha uma parte lajeada, onde se situava uma gigantesca chaminé e ainda um fogão a lenha, que a última vez que visitei o solar encontrava-se no meio das silvas do o pátio interior.
Nesta fotografia, tirada cerca de 1990 (depois da casa vendida) da parte lajeada da cozinha, observa-se a pia de pedra das lavagens e no chão uma espécie de conduta em pedra, que servia para vazar líquidos para a loja dos porcos, que se situava no compartimento inferior.
Aqui, nesta foto também de 1990, além da chaminé e do escano, o banco cumprido posto em frente ao lume, vê-se um outro alçapão, que servia para vazar entulho para a loja dos porcos, imediatamente abaixo da cozinha
Na parte sobrada da cozinha, estava colocada uma enorme mesa onde os empregados e os trabalhadores nos dias das colheitas comiam. Estas refeições decerto barulhentas devem ter desperto a curiosidade do meu pai, porque descreve a alimentação que lhe era servida nas fontes, os grandes pratos de faiança ou barro de onde todos comiam, com enorme pormenor e satisfação. Terá muitas vezes petiscado aqueles pratos fartos e simples.
O horário e os nomes das refeições dos empregados e trabalhadores rurais não tinham nada a ver os actuais. Às 7.30 era o mata-bicho, às 10 horas o almoço, pelo meio-dia o jantar, pelas cinco horas, a merenda, às 8 a ceia e pelas 10.30 a sobreceia.
Ao fundo vêem-se ainda os quartinhos das criadas e por lá dormiram a Flambó, a Laurinda, a Maria, a Lucinda e ainda muitas outras Marias, ao longo de duzentos anos, mas que o tempo apagou irreversivelmente os nomes e a memória das suas humildes existências
Hoje a cozinha está assim e repare-se, apesar da desolação, na majestade das traves que sustentam o chão. Sao certamente peças feitas com um único tronco de uma árvore centenária
Que maravilha deve ter sido esta cozinha! Os banqinhos de pedra à janela são uma graça! E q ambiente deve ter tido quando estava em plena actividade e cheia de gente! Eram o centro da vida da casa, sempre acolhedoras, sempre a rescender de aromas das panelas ou da fogueira na enorme lareira. Havia sempre gente a circular, ninguém se devia sentir só nestas casas, sobretudo os idosos. Por muito diminuídos q estivessem fisicamente, sentados no coração da casa viam sempre gente a falar e a mover-se à sua volta, era como se assistissem à rodagem dum filme em q podiam participar com uma ou outra deixa. Tão diferente do q se passa hoje...
ResponderEliminarNunca vivi pessoalmente estes ambientes, só em casa de amigos. A minha vivência foi sempre de família nuclear bastante reduzida, talvez por isso sempre apreciei tanto as casas com muita gente, agora uma raridade.
Que bom terem ficado com fotografias deste espaço. Sempre dá para imaginar a cena toda e ajudar a manter memórias vivas. Acho q provoca uma nostalgia q é boa, sabe bem...
Obrigada por nos abrir a porta da sua casa ancestral.
Um abraço
Olá Luís
ResponderEliminarBela foto, aquela que extasiado no meio da cozinha olha em redor, continua esbelto de corpo atlético!
Adoro cozinhas, nelas se vivia a tempo inteiro à roda da fogueira ou fogão a lenha.
As minhas lembranças dos fogões a lenha da minha casa continuam a ser os amarelos reluzentes dos fechos das armaduras à volta da tampa do forno, da torneira da água quente, do varão à frente onde se enxugavam os panos da loiça, aquelas criadas andavam sempre a areá-lo...
Ao lê-lo fez-me recordar também a minha infância em que também convivi com tais ambientes, mais pequenos,no entanto muito semelhantes como o que descreve do fumeiro, ainda me lembro de sentada num banco corrido parecido ao que mostra numa das fotos cortar o lombo de porco aos bocadinhos para o alguidar, depois temperava-se com colorau, louro, alho e vinho, macenava uns dias e por fim faziam-se as chouriças com tripa que se comprava na mercearia, tinha um cheiro nauseabundo...depois de demolhada era cheia com a ajuda de um funil pequenino metido na boca da tripa,enfiava a carne com ajuda do dedo acalcava e assim se ia enchendo a tripa, que era dividida em pequenas chouriças que se atavam com guita e iam para o fumeiro corar.
A cozinha do solar tinha um toque de requinte, os banquinhos em pedra a ladear a janela, ainda em pequena vi alguns em casas mais modestas lá pela minha terra, sempre me fascinaram, os primeiros que tinha visto foi no castelo de Leiria...
Em instantes consegui visionar o fausto da cozinha de Outeiro Seco e em segundos a sua completa ruína, sem que tivesse perdido a beleza e o encanto, pois conseguiu descrever em pormenor os horários das refeições tão em uso naquela época que eu própria me julguei ter sentado à mesa e com eles ter comido da mesma palangana.
Coisa brutal esta que senti, quiçá a mesma ao me lembrar de frases tão emblemáticas da sua tão querida Yourcenar...de ficar a pensar e pasmar!
Amei viajar na cozinha do solar de Outeiro Seco, continua apesar da ruína, faustosa, que dizer do Luís espantado bem ao meio pisando ainda as lages de pedra alva, não é que parece mesmo um príncipe, que atitude,magnânimo!
Beijos
Isabel
Baseando-me em vários factores construtivos, entre os quais refiro a diferença de níveis entre a cozinha e o resto do solar e a forma, quase micénica, dos próprios perpeanhos de granito que constituem as paredes, creio que a cozinha pertencerá ao núcleo mais antigo de todo o solar, à qual foram, posteriormente, adicionados outros corpos. Esta é a minha teoria.
ResponderEliminarAs grandes traves que julgo serem de castanho, mas sem certeza, no entanto este tipo arbóreo é um dos mais comuns nesta região, são imponentes e fiquei maravilhado perante o travejamento do tecto, que se percepciona como uma gigantesca teia de aranha estendida sobre todos os incautos que por baixo se passeiam.
Até o teu pai ficou apanhado por esta divisão!
Este corpo, no auge da casa, deveria ser digno de ser vivenciado, pois seria um sem nunca acabar de azáfama, com muitas pessoas a trabalhar ao mesmo tempo. Mas o corpo que mais me intriga é o que lhe está adjacente, e cujo último piso ardeu, algures na história do solar e, por causa dessa destruição, vê-se a escada, que subia rente à parede, parar a meio em direcção a sítio nenhum!
Ainda sobrevive a varanda deste último piso, em granito, sem guardas já, testemunha de dramas passados (tens de referir esta divisão num post futuro).
Quase adivinho alguém encerrado nesta última divisão à espera de alguém que a venha salvar ... isto é a minha imaginação a construir dramas cinéfilos!
Manel
Olá Luís
ResponderEliminarCreio já ter-lhe dito que sou particularmente sensível a esta questão das casas abandonadas.Lembro-me sempre da que me viu crescer e que tive que deixar de um momento para o outro, tendo oportunidade de a rever por fotografia ao fim de trinta anos!Que dor!
Bem sei que o Luís nunca viveu no solar, mas mesmo assim deve "doer", ver uma casa carregada de história e estórias assim, abandonada desta maneira.
Tem ainda, a memória viva do seu pai,as suas próprias recordações, e a planta do solar, que de alguma forma ajudam a recordar os momentos áureos e felizes.
Quanto à cozinha, era certamente magnífica, e cheia de um movimento que creio, nenhum de nós terá condições para imaginar.
Fiquei intrigada quando o Manel refere que o travejamento do tecto da cozinha deixa percepcionar "uma gigantesca teia de aranha".As traves eram assim dispostas?
Acho curioso ter referido o termo mata-bicho.Em Angola, também designávamos assim o pequeno-almoço. Havia até o verbo matabichar? Curiosa a nossa língua.
Um abraço para si.
Maria Paula
Ai Maria Paula, peço perdão pelo devaneio literário que a deve ter levado em erro.
ResponderEliminarTratava-se de um travejamento onde se sucediam as respectivas empenas das tesouras, pendurais, diagonais, tirantes e terças que, no seu conjunto, formam como que uma rede a qual me faz recordar por vezes uma teia de aranha, ainda que esquadriada.
Mas trata-se de um vulgar telhado com estrutura de madeira.
Manel
Viva Luís,
ResponderEliminarGostei realmente do seu texto sobre a cozinha do Outeiro Seco, onde se pode reflectir sobre a importância se um espaço do ponto de vista social ao longo do tempo. As cozinhas eram realmente o espaço nuclear de uma casa, contendo um dinamismo e importância que as cozinhas actuais perderam.
À medida que ia percorrendo o seu texto não consegui evitar que a minha mente fizesse uma viagem pelas memórias de infância até uma outra cozinha, esta num outro espaço geográfico, num palacete de uma vila alentejana. Com todas a diferenças arquitectónicas e de vivências quotidianas que caracterizam o Alentejo, consegui sentir os mesmos aromas, texturas, sensações que descreve. A enorme cozinha alvissima de cal, sempre cheia de gente, ao fundo a grande chaminé onde por alturas de Novembro eram pendurados os enchidos (diferente da prática a norte do Tejo, onde se penduram as carnes no travejamento do tecto ao longo de mais ou menos todo o espaço da cozinha, aqui onde as chaminés têm dimensões maiores, as linguiças, farinheiras e afins são penduradas dentro da chaminé, cerca de dois metros mesmo por cima do lume). Numa parede lateral o "poial" estrutura em alvenaria onde estavam os cântaros enormes, ou pelo menos assim pareciam aos olhos de uma criança, na parede em frente o louceiro de grandes portas de vidro deixando ver os serviços dispostos de modo utilitário (o objectivo eram estarem arrumados para usar e não para se verem). Na outra parede o fogão de ferro sempre ligado com imensas panelas e tachos em cima. Uma criada que chegava com uma galinha para depenar (aquela desgraçada foi a escolhida para o assado do dia....), se era páscoa o borrego já tinha chegado de véspera e desde cedo já estava no forno no tacho de barro próprio. Pelo Carnaval (e quem conhece as tradições do Carnaval no Alentejo, sabe como é levado muito a sério!!!!!) o perú era preparado com cuidados redobrados da senhora da casa, as filhoses e as azavias estavam prontas desde a "Quinta-Feira Magra", e recordo a voz da minha Avó a mandar por mais ovos na massa das filhoses, "São os ovos que lhe dão cor!" ou "Rosa dá um bocadinho da massa ao menino que vai fazer a filhós dele".
Ao lume, sentado no joelho do meu Avô ouvia histórias de vacas, burros e raposas, e quando estava sozinho com a minha Avó, que nessa altura me tratava como um adulto e que me fazia ficar muito orgulhoso e aprumado, me contava as histórias da família.
Quase que me sentia senhor nesta cozinha, quando lá estav tudo girava à minha volta!!!!
Se nesta cozinha não posso mandar mais (vicissitudes de heranças, partilhas e do tempo), na da quinta ainda posso dizer alguma coisa, assim procurei manter os aspectos que a caracterizavam, porque é isso que lhe dá identidade. Ao lado daquelas coisas que marcam os tempos modernos e sem as quais já não podemos viver, (porque estas coisas dos fogões de ferro e por aí fora podem ser muito poéticos mas nada práticos), estão claro os cântaros de barro que vieram do Alentejo, as faianças e imagine-se até uma canga de bois a um canto.....
Abraço
C.
Ainda outra coisa....
ResponderEliminarQuando às advertências a crianças que ficam muito próximo do lume, também as ouvia. E já reflecti muito sobre isso..... Cheguei a uma conclusão: se se está muito próximo do lume têm-se calor, certo? Se se tem calor, bebe-se mais água. Se se bebe mais água aumenta a probabilidade de molhar o colchão......
Como sou de letras e nada das ciências naturais isto poderá ser só delírio......
Caros amigos.
ResponderEliminarAdorei ler os vossos comentários e só lamento não ter tempo para responder um a um. A cozinha era de facto fascinante pelo seu tamanho. o meu pai chegou por lá a andar de bicicleta.
Como a Maria Isabel e a Maria Andrade, bem repararam uma das coisas mais encantadoras do solar eram as janelas com banquinhos de pedra, que existiam um pouco por toda a parte. Em miúdo aquilo também me fascinava. Hoje, gostaria de ter uma casa com apenas uma janela assim, com uns banquinhos e almofadas e passar o ali dia a ler ou a espreitar à janela. Sou um janeleiro incorrígivel.
Gostei muito da explicação mais técnica do Manel, que enriqueceu este post com os seus conhecimentos de arquitectura e geometria. A comparação do travejamento a uma teia de aranha é muito eloquente. Ainda hei-de fazer um post sobre essa casa anexa à cozinha.
Quanto ao "C", é curioso, mas últimamente tenho andado pelo Alentejo fora, a ajudar um amigo meu, que quer comprar por lá uma casa de campo e tenho visto cozinhas antigas que se encaixam na perfeição na descrição que fez. Aquelas chaminés são lindas.
abraços a todos
Caro Luís
ResponderEliminarMais uma vez por aqui, só para dizer, que no Minho, aos banquinhos de pedra junto das janelas, chamam "namoradeiras".Penso que o nome tem a ver com os namoros de antigamente,que se faziam da janela para a rua :)
Abraços
Maria Paula