quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O castigo do parricida


Há uns dois ou três anos quando o Manel comprou esta bela gravura do Século XVIII, tal como ele fiquei muito intrigado com o tema estranho, um homem que é conduzido vendado através duma cidade, com um cão, um macaco e um galo ao centro e ao fundo uma figura alegórica, que parecia representar talvez um rio. Ainda para mais a gravura não tinha nenhum título que esclarecesse a insólita representação.

Talvez por ter trabalhado tantos em anos em bibliotecas e arquivos, desenvolvi uma particular memória para livros, para fixar que este ou aquele assunto é referido naquele documento, que aquela imagem me é familiar e se encontra naquele livro e que por sua vez está debaixo daquela pilha de livros, em casa de alguém que conheço ou no gabinete de um colega. Peço-vos desculpa pela gabarolice, mas essa é de facto uma qualidade que todos os documentalistas desenvolvem e que me permitiu recordar-me de ter lido algures “não-sei-aonde” a descrição da cena, quando vi aquela gravura. Percebi que o aqui ali estava representado era o castigo particularmente atroz de um crime e lembrei-me que tinha lido uma descrição dessa punição, talvez para o incesto ou parricídio, num dos livros do Steven Saylor, um dos romancistas históricos mais empolgantes e rigorosos da actualidade.

O Manel que nestas coisas é muito curioso e persistente foi verificar e confirmou que a situação representada na gravura tinha sido de facto descrita pelo Steven Saylor, na obra, o Sangue Romano. Nesse romance, baseado num caso verdadeiro, Cícero defende Sexto Róscio, acusado de matar o seu pai, um dos actos mais abjectos para a sociedade romana, o parricídio, e consegue absolve-lo desse crime, que teria custado ao seu cliente um castigo semelhante ao descrito na gravura.

Roma era uma sociedade patriarcal em que o pater famílias dispunha de um poder absoluto, quer sobre os seus filhos, quer sobre todo um grupo de pessoas, que dele dependia, como os escravos e famílias de gente livre, mas mais pobres e das quais era patrono. Portanto, atentar contra a vida do pai era ameaçar uma forma de autoridade fundamental, em que se estruturava a organização social romana e como tal era considerado o pior dos crimes e merecia a mais atroz punição.

O castigo para o parricida foi estabelecido no tempo da república romana, ou mesmo antes e tinha sido definido por sacerdotes, em vez de legisladores, pois pretendia reproduzir a ira do pai Júpiter sobre o infame que ousa assassinar a semente que lhe deu a vida.

O horrendo castigo consistia numa série de passos que esta gravura apresenta muito bem. Depois do julgamento, o mau filho era conduzido para fora da cidade e toda a cidade era convocada ao toque de trombetas para assistir.

Eram colocados dois pedestais à altura dos joelhos do parricida. Este, já completamente despido, punha um pé em cada pedestal, ficando acocorado e com as mãos presas atrás das costas. Era depois chicoteado repetidas vezes, até ao ponto, em que o parricida pudesse ver o seu sangue correr pelo chão, sangue esse que lhe tinha sido dado pelo pai e assim compreendia o sacrilégio de ter ofendido a origem da própria vida.

Depois dos carrascos terem terminado o seu trabalho, o criminoso era conduzido até a um saco de peles, cosido de forma a não deixar entrar nem água, nem ar, enquanto que a populaça lhe atirava excrementos e o insultava. De seguida, o parricida era colocado no referido saco, o que significava que se estavam a devolve-lo ao ventre materno. Punham-se nesse mesmo saco os seguintes animais:

- Um galo e um cão, símbolos protectores do lar, que tinham falhado na naccção de proteger o pater famílias e eram por isso também castigados;
- uma serpente, que segundo se acreditava teria morto a sua mãe à nascença;
- Por fim, um macaco, a mais cruel paródia da humanidade feita aos Deuses
O saco era hermeticamente fechado e lançado ao Tibre, aqui representado pela figura alegórica do homem nu, reclinado sobre uma pedra, no canto inferior direito. O pobre homem tinha pois uma morte horrível e o seu cadáver acabava em mar alto, significando todo este percurso, que Júpiter tinha-o condenado em terra, tinha sido lançado a Neptuno, o Deus das Águas e este entregou-o a Plutão, o deus da morte e dos infernos.

Este era então o terrível castigo destinado aos parricidas, na Antiga Roma, mas agora importa falar um pouco sobre a gravura, que está assinada, mas não tem título nem data.

No canto inferior direito tem escrito "I. Wandelaar fecit" e ao centro "Lugdunum Batav. Ianssonii vander Aa excudunt:" No canto inferior esquerdo aparece a letra "B", sem mais nada.

Pieter van der Aa (Leida, 1659 — Leida, Agosto, 1733) terá executado a gravura e Joannes Janssonius (1588-1664) foi o impressor. Este último senhor notabilizou-se na Holanda na impressão de Atlas e outros documentos cartográficos hoje muito valorizados por alfarrabistas. Jan Wandelaar (1690-1759) terá sido o artista e ficou famoso pelos desenhos precisos de anatomia, que fez para a obra de medicina Tabulae Sceleti. – Leiden, 1747 (imagem inferior)

Lugdunum Batav era o nome latino que davam à cidade holandesa Leida, ou Leiden em neerlandês.

Não conhecemos muito mais sobre esta obra, mas segundo uma informação que encontrei na Internet, numa fonte que não me pareceu lá assim muito fidedigna, esta gravura terá feito parte de um livro, a De Rerum Natura, do poeta latino Lucrécio, impressa em Leiden, em 1725, pelo mesmo Joannes Janssonius. Ainda segundo essa fonte, neste caso Jan Wandelaar seria apenas o gravador de uma obra original do pintor holandês Frans van Mieris.
Consegui descobrir no google books um fac-símile on-line desta edição, que de facto continha algumas gravuras, mas nenhuma igual a esta. Contudo, do livro sexto da De Rerum Natura , só consegui consultar o 1º volume e pode ser que precisamente no segundo volume se encontre a referida gravura. Também não percebi porque razão esta estampa ilustraria a obra do poeta Lucrécio. É certo, que na antiguidade, os pensadores escolhiam a poesia para versarem temas como a filosofia, a história ou a ciência, mas na descrição do conteúdo do Livro Sexto da De Rerum Natura parece não haver lugar para uma gravura deste tema.

Enfim, o livro de onde esta gravura foi retirada permanece um mistério e aceitam-se sugestões

8 comentários:

  1. Tudo aquilo que eu sabia sobre esta gravura já está aqui escrito, por isso nada tenho a adicionar.
    Mas não queria deixar de referir que gosto muito do teu texto sobre este tema, o qual me era completamente desconhecido antes de ter dado com esta gravura, e confesso que fiquei algo impressionado com tais práticas (claro que ao ler vários, se não todos, os volumes da colecção "sub-rosa" de Steven Saylor, dei com mais práticas deste teor).
    Começo logo a considerar: "Será que alguém foi condenado a pagar o crime de parricídio por esta forma?". Claro que sim, pois doutra forma não estaria tão bem descrito, com direito a pormenorização e tudo.
    E lembrei-me de ter lido que assistir a estas formas de castigo era considerado um dia feriado para as gentes, a que até crianças assistiam, ocasião considerada de grande gáudio e que dava, inclusivamente, direito a festa! A humanidade passou, e passa (parece que lhe está nos genes), por períodos de barbárie!
    Ficou-me sempre na memória a imagem da ocasião da decapitação de Luís XVI (ou seria de Maria Antonieta? talvez dos dois, pois foram mortos com pouco tempo de intervalo), onde se descrevia que as pessoas acorriam ao local com muita antecedência para terem lugar privilegiado, e que se podiam ver as donas de casa a assistir tricotando tranquilamente, quiçá uma meia ou um qualquer abafo! Não sei se a cena realmente aconteceu, limito-me a recordar aquilo que li sobre este funesto acontecimento.
    Um bom final de semana
    Manel

    ResponderEliminar
  2. Caro Luís,
    Adorei este post, como deve imaginar...
    Apresentou aqui o resultado de uma pesquisa bem sucedida a partir de muito pouca informação. Não conhecia nada deste tema, deste castigo atroz para o parricídio e dos fundamentos em q assentava, mas sabendo nós q ainda hoje há mortes por lapidação e torturas com requintes de malvadez, não custa a imaginar q há dois mil anos a crueldade atingisse este nível...
    Não podia deixar de seguir os links q aqui deixou e depois de os consultar, fiquei mesmo convencida q esta gravura pertencia à edição de 1725 da obra De Rerum Natura (Sobre a Natureza das Coisas) do poeta Lucrécio. Na folha de rosto lê-se "libri sex" q significa seis livros e com o pouco latim q me resta percebi q contém 25 ilustrações. Ao passar as páginas on-line até à pág. 400 do volume I encontrei o livro I e o livro II e 3 gravuras do mesmo Wandelaar mas não sei se me escapou alguma. Assim, acredito q esta gravura do Manel estivesse num dos outros livros ainda no 1º volume ou já do 2º ou do 3º, não sei em quantos volumes estão divididos os seis livros.
    Com tempo, isto pode tirar-se a limpo, mas apesar de agora andar mais atarefada, apeteceu-me vir aqui dar conta das minhas primeiras impressões, já q isto para mim é muito aliciante...
    Parabéns a si e ao Manel, q fez esta bela compra e proporcionou a interessante história q o Luís nos contou.
    Um abraço

    ResponderEliminar
  3. Afinal o nº 25 não se refere às ilustrações, foi uma leitura apressada... Achava estranho serem tantas, porq nos dois primeiros livros só encontrei 3, 4, se contarmos as das primeiras páginas...

    ResponderEliminar
  4. Luís, sabe que adoro estes seus escritos sobre gravuras antigas.Aprendi consigo e com o Manel a olha-las e aprecia-las com admiração. Também a descobrir as suas estórias. Como sempre a sua escrita exalta os sentidos, eleva-nos, é um júbilo lê-lo. Vivi intensamente a estória do parricida!
    Nas feiras já olho para os estaminés tento descobrir por entre folhas diplomas e não sei mais o quê, gravuras...
    Pena o meu marido não apreciar...e não me as compra!
    Nota mayor, neste começo de ano!

    Nada a propósito, sabe que espero pelo post da sua pia de água benta em branco e azul que me fascinou pendurada na parede...

    Hoje perdi-me a falar com o Sr Pedrinhas na feira de Paço d'Arcos.
    Confidenciou-me que vai editar um livro daqui a coisa de 20 dias no CCB, editora Minerva. Vai ser uma coisa grande. Nele revela uma grande descoberta arqueológica submersa no mar. Cidade maior que Roma,não revelo a zona, ele por enquanto não revela as coordenadas no livro.Mas eu sei, ele confidenciou-me!
    As fotografias de casas, palácios, ruas, colunas e estátuas, estas de testa muito alta, queixo saliente, nariz grande, olhos encubados e cabelo tipo entrançado a imitar cifres.
    Está com medo que seja preso por revelar tal descoberta. Descansei-o. Ele apenas como um bom geólogo com paixão pelas pedras e gosto pelas lendas foi atrás delas e anda nisto desde se não me engano 1995.Estou tão feliz que tive de partilhar esta notícia. Acho que será uma notícia bombástica a nível internacional.
    Amazing, num dia que amanheceu de nevoeiro.
    Sorte a minha que comprei dois pratos Companhia das Índias partidos por 20 €, azuis, daqueles que também gosta!
    Desculpe a extensão do comentário
    Beijos
    Isabel
    Beijos
    Isabel

    ResponderEliminar
  5. Caros Manel e Maria Andrade

    A nossa Biblioteca Nacional tem a edição de 1725 do De Rerum Natura e aborrece-me não ter tempo para ir lá consulta-la ao vivo e desfazer as dúvidas todas.

    No entanto, talvez por acaso, qualquer um de nós virá a descobrir mais qualquer coisa sobre esta gravura. Ainda não consultei a Joconde, que permite pesquisar as imagens por temas representados.

    Anraços

    ResponderEliminar
  6. Cara Isabel

    As gravuras tornam-se rapidamente uma paixão para o amante das coisas antigas e são a única maneira acessível de se ter as paredes da casa decoradas com obras genuínas do século XVII ou XVIII. Uma boa gravura setecentista arranja-se por muito bom preço numa feira de velharias, agora para comprar um quadro a óleo original do século XVIII, são precisos muitas, mas muitas e muitas centenas de euros. E depois há gravuras para todos os gostos: religiosas, mitológicas, retratos, paisagens, anatomia ou representações de fauna e flora

    ResponderEliminar
  7. Olá Luis
    Sabe que já folheei os três primeiros livros q constituem o 1º vol. da edição online do "De Rerum Natura" e não encontrei esta gravura. Poderá estar nos 3 últimos, q compõem o 2º volume, mas sabe qual é agora a minha dúvida? Todas as gravuras q vi estão em posição vertical ou em retrato e a do Manel é horizontal ou em paisagem. Será q no 2º volume as gravuras mudaram de posição ou não foi mesmo desta edição q ela foi tirada?
    É como diz, temos q continuar a procurar.
    Agora vou-lhe fazer um bocadinho de inveja!!!(LOL)
    A minha última aquisição, a um preço irrisório, foi um conjunto de 4 gravuras emolduradas com as 4 estações, de uma dupla famosa que não sei se conhece: G. B. Cipriani e F. Bartolozzi. Brevemente farei um post para as mostrar.
    Um abraço

    ResponderEliminar
  8. Cara Maria Andrade

    Também reparei no facto de que na edição em causa, a tal de 1725, as gravuras estarem na vertical e a do Manel se apresenta na horizontal e foi um dos factores que me fez torcer o nariz a achar que este castigo do parricida pertenceu à obra De Rerum Natura.

    Fiz também uma pesquisa na Joconde, no google pelos termos em francês chatiment d'un parricide, mas ainda não consegui descobrir mais nada significativo.

    A oporta continua em aberto

    ResponderEliminar