sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Clotho: a mais nova das parcas


Esta estampa francesa representando Clotho é uma das minhas peças preferidas da casa do Manel.

Apesar de estar aqui representada com um luxuoso vestido de seda, próprio para um baile na corte em Versalhes, esta Clotho é uma das parcas, figuras temíveis e muito pouco simpáticas da mitologia greco romana, que presidiam aos destinos dos Homens.

Segundo a tradição clássica, as Parcas eram três irmãs, Clotho, Lachésis e Atropos e detinham o fio misterioso, que simbolizava o curso da vida humana e eram por isso representadas como fiandeiras.
Clotho tecia o fio da vida, Lachésis enrolava o fio no fuso e Atropos cortava o fio. No fundo, a primeira criava a vida, a segunda tratava da prossecução da vida e a última punha-lhe fim, com uma simples e precisa tesourada. (Ver imagem superior de Giovanni Battista Paggi)

Esta tradição da mitologia clássica sobreviveu no português actual, pois usamos na nossa linguagem corrente, muitas vezes expressões como “tecer o destino”ou o “frágil fio da vida”, mesmo que não saibamos, que estas metáforas tem origem no mito destas terríveis mulheres.
Esta Clotho sempre me fascinou por causa do realismo com que é representada a seda do vestido. Não é fácil representar as texturas e o cair dos diferentes tecidos. Sei disso, porque em jovem interessei-me por moda, comprei livros sobre desenho de figurinos e cheguei a pintar muitos croquis de vestidos, mas a seda era sempre representação difícil. Contudo, nesta estampa, ao olharmos para o vestido da Clotho, o artista conseguiu a proeza de nos fazer ouvir o frufru da seda de um vestido de corte, num salão de baile revestido a espelhos venezianos.

Fascinado com a Clotho, procurei saber mais e pesquisei sobre o impressor, o Monsieur Mariette. Fiquei um pouco confuso porque descobri que Mariette é o nome de família de uma dinastia de impressores, livreiros e coleccionadores, que tiveram a sua oficina em funcionamento nos séculos XVII e XVIII, em Paris, na Rue de S. Jacques. Esta rua fica na Rive Gauche e hoje é uma artéria, que a remodelação urbanística do Século XIX, de Haussman, tornou insignificante

Existiram portanto três senhores Mariette , primeiro, o Pierre Mariette, (1603-1657), o segundo Jean Mariette (1660-1742) e o terceiro, Pierre-Jean Mariette (1694–Paris 1774), o mais famoso de todos, que além de livreiro e impressor, foi um coleccionador famoso e crítico de arte.
Estava pois na dúvida sobre qual dos Mariettes tinha impresso esta estampa e fiz uma pesquisa mais aturada no site da Bibliothèque nationale de France e acabei por descobrir que o responsável por esta Clotho foi o Monsieur Jean Mariette (1660-1742), cujas obras tinham sempre esta assinatura característica I. Mariette, com o sinal identificador aux colonnes d'Hercules.

Presumindo que o Monsieur Jean Mariette tenha começado a assinar as suas próprias obras com cerca de vinte anos de idade, podemos datar esta gravura entre 1680 e 1742.

Estava resolvido o problema da autoria, mas resolvi ir um pouco mais além e tentar saber se esta estampa pertenceu a um livro, ou se o Jean Mariette foi um mero executor de desenhos dos outros. Não encontrei a resposta a estas perguntas, mas também na La Bibliothèque nationale de France, encontrei mais uma estampa com a sua assinatura, Madame de *** en Magdelaine, que retrata uma dama de corte, despojando-se das suas jóias como Maria Madalena fez outrora e o tratamento dos tecidos é exactamente igual ao da Clotho. A mestria inacreditável no tratamento dos tecidos luxuosos parece ser característica da obra de Jean Mariette

6 comentários:

  1. Creio que esta gravura seria, inicialmente, pertença de um trio, cada uma dedicada a uma das Parcas, onde o autor deve ter tido a oportunidade de utilizar a sua virtuosidade na execução de tecidos e não só, pois as feições desta Clotho são duma invulgar delicadeza.
    Por sorte para os seus amantes, as gravuras não estão de moda e, como tenho apreço por elas, posso adquiri-las à minha vontade, por preços quase irrisórios! Dou-me ao luxo de as escolher com todo o cuidado e adquirir só o que me parece de grande qualidade.
    Houve verdadeiros artistas dedicados à sua excecução, pois, no passado, poucas eram as casas que, ainda que com dinheiro, se permitissem ter acesso à grande pintura, obras de mestres, que trabalhavam para uma classe muito abastada. Restava-lhes o recurso à gravura, muitas vezes baseada em cópias dos grandes mestres da pintura.
    Hoje qualquer curioso agarra num pincel e dedica-se à pintura, e quantos incauttos compradores, de juízo menos apurado, julgam estar a adquirir a obra das suas vidas.
    Quando as coisas não correm de feição ao suposto "artista" ele afirma ter produzido uma obra "surrealista" ou então, coloca-lhe uns borrões por cima, somados a mais uns traços na horizontal e na vertical, ou então, para lhe dar "dinamismo", oblíquos, e chama-lhe de "pintura abstracta", "minimalista", "arte povera" ou outra qualquer designação que vá mais de acordo com o triste resultado com que acabou!
    Claro que as coisas valem pelo que o mercado está disposto a pagar por elas.
    A tradicionalmente denominada "Arte", hoje em dia, face aos muitos movimentos que surgiram a partir de finais do século XIX até hoje, deixou de ter um valor intrínseco, e passou a ficar dependente do que lhe foi conferido pelo da oferta/procura que a classe média emergente tem manifestado.
    Não creio que seja importante, nem julgo ser esse o intuito que gera o bem estar nas pessoas aquando da aquisição da peça, haver uma só forma de "Arte", mas sim que o comprador seja conhecedor e que a adquira por razões esclarecidas, baseadas em princípios estéticos adquiridos por uma formação cultural sólida, independente de modas instituídas por pessoas ignorantes, "parvenus", "deslumbrados" e, por vezes, pouco escrupulosos, que se julgam detentoras de "verdades absolutas". Já conheci vários e sei o seu poder corrosivo.
    Lembro-me de, há vários anos, em visita a uma mostra de arte patente em Serralves, numa das salas existia uma obra que consistia numa longa e estreita tira de pneumático (daquelas que povoam as bordas das auto-estradas, resultantes de um qualquer pneu que tenha rebentado) que formava um "looping", sustentado por um pau ao alto. Um estrutura em equilíbrio altamente instável!
    Inevitavelmente, devido ao seu posicionamento mesmo no centro da sala, um qualquer aluno, inadvertidamente bateu no pau com o pé, lá se foi o "looping" e o vigilante a querer "deitar-lhe fogo" ... que isto e aquilo, que ia chamar a segurança ... enfim, um chinfrim ... agarrei no bocado de pneumático e no pau e refiz um outro qualquer "looping", ainda que meio canhestro e completamente diferente do original, mas um "looping" de qualquer forma.
    Salvei o jovem! Mas lá se foi a intenção original (se alguma houve) que presidiu à montagem da mostra de arte!!!!
    A "arte" em transformação, dirão os "connoisseurs" ... um bocado de lixo elevado ao estatuto de arte, direi eu, mas quem sou eu? Mais um "bota-de-elástico" e "Velho do Restelo" claro!
    Se me importo? Confesso que não.
    Desculpa o arrazoado!
    Manel

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  2. Caro Luís
    Sem dúvida alguma, esta gravura apresenta-nos uma Clotho, muito bonita,muito suave.Não parece deter um poder tão duro, como o de fiar o fio da vida!
    Parabéns ao Manel,que a descobriu e teve o bom gosto de a comprar.

    Refere o realismo da representação da seda e isso fez-me lembrar que a Paula Rego, também consegue isso muito bem.Há uns anos, tive oportunidade de ver uma exposição sua em Serralves e, apesar de não gostar das suas possantes mulheres,nem dos temas que as suas pinturas insinuam, reconheço que é uma grande pintora.Recordo-me especialmente de um grande quadro, em que aparece uma mulher com um vestido amarelo comprido e que se percebe de imediato que é seda,o que ali está representado.Há também outro, em que ela pinta umas meninas de bibe e não restam dúvidas que são rematados a bordado inglês.
    Já me alonguei no comentário,mas por vezes acontece-me :)
    Uma boa semana para si
    Maria Paula

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  3. Viva,

    Com imenso orgulho junto-me ao clube dos "bota de elástico", "Velho do Restelo", "caretas" se quiserem....
    Mas para mim a Arte tem de ser bela, com toda a controvérsia que tem o conceito e a ideia de Belo. Já muito se disse e muitos tratados se escreveram sobre o Belo e Beleza, infelizmente deixaram de se escrever, talvez por isso a arte se tornou tão "feia"..... É certo que a ideia do que é belo é construida por cada um em função de múltiplos factores, intrínsecos e extrínsecos, mas a forma como o nosso tempo distorceu a realidade, e até a corrompeu, chamando arte e artistas ao que por vezes, claramente é lixo e inúteis. Mas pior do que estes inúteis são os brutos que deliram com estas produções do "pós-contemporâneo", que com pretensões a cosmopolitismo não passam de ignorantes.
    Chamem-me o que quiserem, mas não consigo entender uns borrões numa tela, um monte de lixo, que dizem ser uma "obra de arte"????? E a verdade é que podemos ver estes pedaçoes de lixo pelas galerias de arte e até em salas de museus!!!! Artes decorativas, mobiliário, arquitectura, música, deixaram de ter no seu espírito a noção de Estética....Abomino esta tendeência "fun" de tudo o que se faz, tudo é prático, colorido e reciclado, muito plástico e funcional, mas terrivelmente ordinário. Mas claro, se se disser que é design, então tudo bem!!!
    Contudo ainda se vão fazendo algumas coisas com qualidade, pouco mas faz-se. Sim , porque também gosto do que se pode chamar "moderno"!!!!!

    Abraço

    C.

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  4. Olá Luís,
    Não há dúvida que a qualidade artística destes gravadores dos séculos XVII e XVIII atingiu níveis de excelência. Também admiro a sua capacidade de reproduzirem tão fielmente a textura dos tecidos, neste caso o brilho da seda e os bordados. Não nos podemos esquecer q antes do advento da fotografia era a gravura q tinha a função de dar a conhecer a realidde, o mais fielmente possível...
    Esta arte de reproduzir tecidos encontra-se na pintura desde muito cedo e estou-me a lembrar, por exemplo dos Painéis de São Vicente de Fora, q revisitei este fim de semana a propósito da exposição dos Primitivos Portugueses no MNAA. onde se notam bem os veludos , os brocados, a par de tecidos mais grosseiros, mas penso, na minha relativa ignorância, q isso seja mais fácil de conseguir na pintura do q na gravura.
    Também é interessante ver uma figura da mitologia clássica vestida como uma dama do séc. XVII ou XVIII, mas isso fazia-se na época, também com figuras da mitologia cristã.
    O mito das Parcas q fiavam o fio da vida faz-me lembrar um texto lindíssimo atribuído ao Chefe Seattle, chefe índio norte-americano do séc. XIX, e q os ambientalistas gostam de citar, em q ele diz q não foi o homem q teceu a teia da vida, ele é apenas um fio dessa teia e todo o mal q fizer à teia faz a ele próprio...
    Tudo isto são consideraçõe suscitadas por uma gravura q acho lindíssima e q foi muito bem apresentada.
    Abraços

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  5. Caros amigos

    Confesso-vos que também me cansa muita da arte moderna e talvez uma das excepções seja precisamente Paula Rego, que pinta como os grandes mestres do passado, borrifando-se para as modas e para o que se faz de mais arrojado e "fun" em Nova Iorque. Para mim, a Paula Rego é uma espécie de Goya ou Velásquez de saias e é hoje uma grande pintora e no futuro a sua obra será certamente considerada clássica.

    Também me parece que falta uma renovada reflexão sobre o belo.

    A Maria Andrade tem razão. Houve ao longo história pintores extraordinários de tecidos, mas nas gravuras parece que tem sempre um tratamento mais pobre. Talvez seja uma limitação da própria arte da gravura. Por essa razão, acho esta gravura excepcional.

    Abraços a todos e gostei imenso de ler os vossos comentários

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  6. Cara Maria Andrade

    Creio que para além da tradição clássica, há mais mitologias que tendem a representar a vida humana como o fio de uma teia. Esta associação de ideias é relativamente lógica e fácil.

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